Sangha Virtual

 Estudos Budistas

Tradição do Ven. Thich Nhat Hanh

 

14 Treinamentos da Ordem do Interser (parte 1)

 

O PRIMEIRO TREINAMENTO

Abertura

 

Consciente do sofrimento causado pelo fanatismo e pela intolerância estou determinado a não idolatrar ou me limitar por doutrinas, teorias ou ideologias, mesmo o budismo. Os ensinamentos budistas são princípios que me ajudam a aprender como observar profundamente e como desenvolver minha compreensão e minha compaixão. Eles não são doutrinas pelas quais se deva lutar, matar ou morrer.

 

Quando nós lemos os sutras, os discursos do Buda, ouvimos freqüentemente a expressão, "o grande rugido do leão." Isto representa a verdade ruidosamente e claramente proclamada pelo próprio Buda ou um dos seus grandes discípulos. O Primeiro Treinamento de Plena Atenção da Ordem de Interser está muito alinhada a essa tradição. É a voz compassiva do Buda que nos chama.

 

O Buda considerou os seus próprios ensinamentos como uma balsa para cruzar um rio e não como uma verdade absoluta a ser adorada ou para se apegar. Ele disse isto para impedir o dogmatismo rígido ou que o fanatismo criasse raízes. Inflexibilidade ideológica é responsável por boa parte dos conflitos e violência no mundo. Muitos textos budistas, inclusive os sutras Kalama, Arittha (Sabendo o Modo Melhor de Pegar uma Cobra), e Vajracchedika (Diamante Que Corta a Ilusão), falam deste assunto importante. De acordo com os ensinamentos budistas, o conhecimento pode ser um obstáculo à verdadeira compreensão e visões podem ser uma barreira ao insight. Apegos a visões podem nos impedir de chegar a um entendimento mais profundo da realidade. O budismo nos urge que transcendamos mesmo nosso próprio conhecimento se desejarmos avançar no Caminho de Despertar. Visões (drishti) são consideradas como "obstáculos ao conhecimento."

 

O Primeiro Treinamento da Ordem de Interser nos mostra a abertura total e a tolerância absoluta do budismo. Abertura e tolerância não somente são modos para se lidar com pessoas na vida diária; verdadeiramente são portais para a realização do Caminho. De acordo com o budismo, se não continuarmos ampliando os limites de nossa compreensão, seremos capturados por nossas visões e incapazes perceber o Caminho.

 

No Sutra das Cem Parábolas, o Buda conta a história de um jovem comerciante e seu filho. O comerciante, um viúvo, amou seu filho afetuosamente, mas o perdeu devido à falta de sabedoria. Um dia, enquanto o homem estava fora, seu pequeno filho foi seqüestrado por uma gangue de bandidos que arrasaram a aldeia inteira antes de fugir. Quando o jovem comerciante voltou para casa, achou os restos carbonizados de uma criança próximo de onde ficava a sua casa, e no seu sofrimento e confusão, confundiu aqueles restos carbonizados com o seu próprio filho. Ele chorou incessantemente, organizou uma cerimônia de cremação e a partir dessa data levava a bolsa de cinzas com ele dia e noite, amarrada ao redor do seu pescoço. Alguns meses depois, o pequeno menino conseguiu escapar dos bandidos e achar o caminho da sua casa. À meia-noite, ele bateu na porta da casa reconstruída do seu pai, mas o pai, pensando que algum menino perverso o estava ridicularizando, se recusou a abrir a porta,. O menino bateu e bateu, mas o comerciante ficou agarrado à sua visão de que o seu filho estava morto, e assim o seu filho teve que ir embora. Este pai que amou muito perdeu para sempre o seu filho.

 

O Buda disse que quando estivermos apegados a visões, até mesmo se a verdade vem para nossa casa e bate em nossa porta, nos recusaremos deixá-la entrar. Abraçar de forma inflexível uma visão e considerá-la como verdade fixa é terminar o processo vital de investigação e despertar. Os ensinamentos do Buda são meios de ajudar as pessoas. Eles não são um fim para se adorar ou lutar.

 

Agarrar-se fanaticamente a uma ideologia ou uma doutrina não só nos impede de aprender, mas também cria conflitos sangrentos. Os piores inimigos do budismo são o fanatismo e a estreiteza. Guerras religiosas e ideológicas arruinaram a paisagem da história humana durante milênios. Guerras santas não têm lugar no budismo, porque matar destrói o valor do próprio budismo. A destruição de vidas e valores morais durante a Guerra de Vietnã foi fruto do fanatismo e da estreiteza. A Ordem do Interser nasceu durante aquela situação de sofrimento extremo, como uma flor de lótus que surge de um mar de fogo. Entendido neste contexto, o Primeiro Treinamento de Plena Atenção da Ordem de Interser é a voz compassiva do Buda em um oceano de ódio e violência.

 

O Primeiro Treinamento de Plena Atenção inclui todos os outros, inclusive o treinamento de não matar e proteger toda a vida. De acordo com o budismo, ações surgem em três domínios: corpo, fala e mente. Nós normalmente pensamos que a matança acontece no domínio do corpo, mas uma mente fanática pode causar a matança de não apenas um, mas de milhões de seres humanos. Se nós seguimos a orientação do Primeiro Treinamento de Plena Atenção, todas as armas se tornarão inúteis.

 

Da mesma forma que são necessários vários tipos de remédio para tratar uma variedade de doenças, o budismo também precisa propor várias portas de Dharma para pessoas de circunstâncias diferentes. Embora estas portas de Dharma possam diferir uma da outra, elas são todas portas de Dharma. De maneira similar, são tratadas doenças diferentes com remédios particulares, mas todos os tratamentos usam algum tipo de remédio, até mesmo se o remédio for somente água, ar, ou massagem. Os ensinamentos e práticas achadas no budismo podem variar, mas todos eles objetivam a liberação da mente. O Buda disse, “A água nos quatro oceanos tem só um gosto, o gosto de emancipação". Os estudantes de budismo precisam ver os vários ensinamentos na mesma luz. Franqueza e desapego a visões deveriam estar guiando os princípios para todos os empenhados na reconciliação e paz. Eles também são as portas que conduzem ao mundo da realidade última e da liberdade absoluta.

 

O SEGUNDO TREINAMENTO

Desapego a Visões

 

Consciente do sofrimento causado pelo apego a conceitos e percepções errôneas, estou determinado a não possuir uma mente limitada e amarrada às idéias atuais. Aprenderei e praticarei o desapego a pontos de vista a fim de estar aberto a outras compreensões e experiências. Estou consciente de que o conhecimento que possuo não é imutável e não constitui verdade absoluta. A verdade é encontrada na vida e a observarei tanto no meu interior como ao redor de mim, em cada momento, pronto a aprender através de toda a minha vida.

 

O Segundo Treinamento de Plena Atenção nasce do Primeiro, e lida com a mente também. Este treinamento nos adverte a não ser pegos em nosso próprio conhecimento. Conhecimento pode ser necessário para pensar e julgar e pode ser útil em muitas partes de nossa vida diária, mas não é a verdade mais alta. Quando nós contemplarmos um pôr-do-sol, pensamos que o sol está sobre o horizonte, mas um cientista nos falará que o sol já se pos oito minutos mais cedo. Leva esse tempo para nós o vermos. Nós percebemos que vimos só o sol do passado e não o sol do presente, que nossa percepção era errônea. Mas se nós fôssemos nos apegar ao nosso conhecimento prévio, perderíamos a oportunidade de avançar em nossa compreensão.

 

O budismo nos ensina a olhar para as coisas na sua natureza de interser e de co-surgimento dependente. Quando fizermos isto, nos livramos de um mundo no qual cada coisa parece ter uma identidade individual. A mente que vê as coisas no seu interser, na sua natureza de co-surgimento dependente é chamada de a mente de compreensão não discriminativa. Esta mente transcende todas as visões. No Budismo Zen, há uma expressão que descreve este estado de insight: "A estrada da fala foi bloqueada, o caminho da mente foi cortado."

 

"A verdade é achada na vida" e não somente no conhecimento conceitual. Como praticamos isto? Observando realidade em nós mesmos e no mundo a todo momento. Esta é a resposta budista. Observar a vida continuamente é praticar de acordo com o método do Sutra dos Quatro Estabelecimentos de Plena Atenção (Satipatthana). O sutra nos ensina como estar atento ao que está entrando em nosso corpo, em nossos sentimentos, em nossa mente, e ao objeto de nossa mente que é o mundo. A prática de plena atenção pode nos ajudar a desenvolver a concentração e insight, de forma que possamos ver realidade como ela é.

 

O TERCEIRO TREINAMENTO

Liberdade de Pensamento

 

Consciente do sofrimento causado quando imponho meus pontos de vista aos outros, comprometo-me a não forçar ninguém, nem mesmo os meus filhos, por quaisquer que sejam os meios, tais como: autoridade, ameaça, dinheiro, propaganda ou doutrinação, a adotar os meus pontos de vista. Respeitarei o direito das pessoas de serem diferentes e de escolherem no que acreditar e os meios pelas quais decidirão. Contudo, ajudarei a renunciarem ao fanatismo e à estreiteza através de um diálogo compassivo.

 

Este Terceiro Treinamento de Plena Atenção lida com a questão de liberdade de pensamento, e, portanto com a mente. Muitos pais, sem estar atentos a isso, não seguem este treinamento de plena atenção. Respeitar os pontos de vista dos outros é uma característica, um carimbo oficial do budismo. O Kalama Sutta é uma das primeiras escrituras sobre livre questionamento. Nele, o Buda discute o problema de quem ou o que acreditar e qual doutrina é a melhor. O Buda diz, “é ótimo ter dúvida. Não acredite em algo só porque que as pessoas pensam que é algo elevado, ou porque veio de tradição, ou porque é achado nas escrituras. Considere se vai contra seu julgamento, se poderia causar dano, se é condenado por pessoas sábias e, acima de tudo, se colocado em prática provocará destruição e dor. Qualquer coisa que você julga ser bonito, de acordo com seu julgamento, é apreciado por pessoas sábias e, uma vez posto em prática, provocará alegria e felicidade, pode ser aceito e pode ser posto em prática."

 

Como uma sombra segue um objeto, o Terceiro Treinamento de Plena Atenção segue o Segundo, porque a atitude de franqueza e desapego de visões cria respeito pela liberdade dos outros. Liberdade é um dos direitos mais básicos do ser humano - de todos os humanos e não só alguns. Para ser capaz de respeitar a liberdade outros, precisamos nos livrar do apego e fanatismo e ajudar os outros a fazer o mesmo. Como podemos ajudar outras pessoas? "Através do diálogo compassivo” diz este treinamento. Diálogo compassivo é a essência da ação não violenta (ahimsa). Ahimsa começa com as energias de tolerância e bondade que são expressadas pela fala suave, compassiva e inteligente que podem emocionar o coração das pessoas. Passa então ao campo da ação para criar pressão social e moral para as pessoas mudarem. Entendimento e compaixão devem ser a base de todas as ações não violentas. Ações motivadas por raiva ou ódio não podem ser descritas como não violentas.

 

Como pais, temos que respeitar liberdade de pensamento de nossos filhos, até mesmo se eles ainda são muito jovens. Isto nos permitirá aprender com eles. Cada ser humano é único em suas características, capacidades e preferências. Nós deveríamos tentar estar abertos de forma a ver e entender nossos filhos e nos abster de impor nossas predisposições a eles. Embora flores também pertençam à árvore, não são iguais às raízes, folhas, e ramos. Nós deveríamos permitir às flores serem flores, folhas serem folhas e ramos serem ramos, de forma que cada um possa  perceber a sua capacidade mais alta a ser desenvolvida.

 

(Traduzido do livro “Interbeing” – Thich Nhat Hanh)

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