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 Estudos Budistas

Tradição do Ven. Thich Nhat Hanh

 

Os Cinco Treinamentos de Plena Atenção - Segundo Treinamento – Verdadeira Felicidade

 

Consciente do sofrimento causado pela exploração, injustiça social, roubo e opressão, eu me comprometo a praticar a generosidade no meu modo de pensar, de falar e de agir. Estou determinado a não roubar e a não possuir nada que porventura pertença a outros, e a compartilhar meu tempo, energia e recursos materiais com aqueles que precisam. Praticarei a observação profunda para ver que a felicidade e o sofrimento dos outros não estão separados da minha própria felicidade e sofrimento. Praticarei para ver que a verdadeira felicidade não é possível sem compreensão e compaixão – e que buscar riqueza, fama, poder e prazeres sensoriais podem gerar muito sofrimento e desespero. Estou consciente de que a felicidade depende da minha mente e não de condições externas, e que posso ser feliz no momento presente, bastando me lembrar de que já possuo todas as condições para isso. Eu me comprometo a praticar o Meio de Vida Correto de forma a reduzir o sofrimento dos seres vivos na Terra e, especialmente, reverter o processo de aquecimento global.(*)

 

A exploração, a injustiça social e o roubo existem sob muitas formas. A opressão é uma forma de roubo que causa muito sofrimento tanto no Primeiro quanto no Terceiro Mundos. A partir do momento em que fizermos o voto de cultivar a brandura, nascerá dentro de nós a gentileza amorosa e faremos todo esforço para acabar com a exploração, a injustiça social, o roubo e a opressão.

 

No primeiro treinamento para a mente alerta encontramos a palavra "compaixão". Aqui encontramos as palavras "gentileza amorosa". A compaixão e a gentileza amorosa são dois aspectos do amor pregado pelo Buda. Compaixão, karuna em sânscrito e páli, é a intenção e capacidade de aliviar o sofrimento de outra pessoa ou ser vivo. A gentileza amorosa, maitri em sânscrito, metta em páli, é a intenção e a capacidade de trazer alegria e felicidade a outra pessoa ou ser vivo. Foi predito pelo Buda Shakyamuni que o próximo Buda teria o nome Maitreya, o Buda do amor.

 

Consciente do sofrimento causado pela exploração, injustiça social, roubo e opressão, eu me comprometo a praticar a generosidade no meu modo de pensar, de falar e de agir. Ainda que tenhamos a maitri como fonte de energia dentro de nós, precisamos aprender a olhar mais profundamente para encontrar formas de expressá-la. Fazemos isto enquanto indivíduos e aprendemos as formas de fazê-lo enquanto nação. Para promover o bem-estar das pessoas, animais, plantas e minerais, temos de nos unir em comunidade e examinar nossa situação, exercitando nossa inteligência e nossa capacidade de olhar profundamente, para poder descobrir for-mas apropriadas de expressar nossa maitri em meio a problemas reais.

 

Suponhamos que nós queiramos ajudar aqueles que estão sofrendo sob uma ditadura. No passado talvez tenhamos tentado enviar tropas para derrubar o governo ditatorial, mas aprendemos que, fazendo isto, causamos a morte de muitas pessoas inocentes e, mesmo assim, talvez não tenhamos conseguido derrubar o ditador. Se praticarmos o olhar em profundidade, com gentileza amorosa, para encontrar uma forma melhor de ajudar estas pessoas sem causar sofrimento, podemos chegar à conclusão de que a melhor hora de ajudar é antes de o país cair nas mãos de um ditador. Se oferecermos aos jovens desse país a oportunidade de aprender a nossa forma democrática de governo, dando a eles bolsas de estudo para virem ao nosso país, este seria um bom investimento para a paz no futuro. Se tivéssemos feito isto há trinta anos, o outro país poderia ser democrático agora, e não teríamos de bombardeá-lo ou enviar tropas para "libertá-lo".

 

Este é apenas um exemplo de como o olhar em profundidade e o aprender podem ajudar-nos a encontrar formas de agir mais de acordo com a gentileza amorosa. Se esperarmos até a situação ficar ruim pode ser tarde demais. Se praticarmos os treinamentos para a mente alerta junto com políticos, militares, empresários, advogados, legisladores, artistas, escritores e professores, podemos encontrar as melhores formas de praticar a compaixão, a gentileza amorosa e a compreensão.

 

Requer tempo praticar a generosidade. Talvez queiramos ajudar aqueles que estão com fome, mas ficamos presos aos problemas do nosso próprio viver cotidiano. Às vezes, uma pílula ou um pouco de arroz poderiam salvar a vida de uma criança, mas não tomamos o tempo para ajudar, pois pensamos que não temos tempo. Na cidade de Ho Chi Minh, por exemplo, existem crianças de rua que chamam a si mesmas de "poeira da vida". Não têm onde morar, vagam pelas ruas durante o dia e dormem sob árvores à noite. Vasculham o lixo em busca de coisas como sacos plásticos que vendem por alguns centavos o quilo. As monjas e monges na cidade de Ho Chi Minh abriram seus templos para estas crianças, e se as crianças concordam em ficar lá por quatro horas no período da manhã - aprendendo a ler e escrever e brincando com as monjas e os monges - recebem um almoço vegetariano. Depois podem ir à sala do Buda para um cochilo. (...)

 

Às duas há mais ensinamento e brincadeira para as crianças, e as crianças que ficam durante a tarde recebem jantar. O templo não dispõe de espaço para elas dormirem à noite. Nossa comunidade na França vem financiando em parte a atividade dessas monjas e monges. O custo é de apenas vinte centavos para uma criança ter almoço e jantar, e vai evitar que ela fique nas ruas, onde poderia roubar cigarros, fumar, usar um linguajar de delinqüente e aprender o pior dos comportamentos. Encorajando as crianças a irem para o templo, ajudamos a evitar que elas se tornem delinqüentes e caiam na prisão mais tarde. Leva tempo para ajudar essas crianças, mas não muito dinheiro. Há muitas coisas simples como esta que podemos fazer para ajudar as pessoas, mas porque não nos livramos da nossa situação e do nosso estilo de vida não fazemos absolutamente nada. Precisamos unir-nos em comunidade e, olhando em profundidade, encontrar formas de nos libertar, para poder praticar o segundo treinamento para a mente alerta.

 

Estou determinado (...) a compartilhar meu tempo, energia e recursos materiais com aqueles que precisam. Esta frase é clara: o sentimento de generosidade e a capacidade de sermos generosos não bastam. Precisamos também expressar nossa generosidade. Podemos achar 'que não dispomos de tempo para fazer as pessoas felizes - dizemos: "tempo é dinheiro", mas tempo é mais do que dinheiro. A vida é bem mais do que usar o tempo para ganhar dinheiro. O tempo é para se viver, para compartilhar a alegria e a felicidade com os outros. Os ricos são normalmente os menos capazes de fazer os outros felizes. Apenas os que têm tempo podem fazê-lo.

 

Conheço um homem chamado Bac Siêu na província de Thua Thiên no Vietnã que pratica a generosidade há cinqüenta anos; ele é um bodhisattva vivo. Com apenas uma bicicleta ele visita aldeias de treze províncias, levando alguma coisa para esta família e outra coisa para aquela. Quando o conheci em 1965, eu estava um pouco orgulhoso demais da nossa Escola de Jovens para o Serviço Social. Tínhamos começado a treinar trezentos assistentes, incluindo monjas e monges, para ir às aldeias rurais e ajudar as pessoas a reconstruir suas casas e modernizar as economias locais, os sistemas de saúde e a educação. Chegamos a ter dez mil assistentes espalhados pelo país.

 

Enquanto eu falava a Bac Siêu sobre nossos projetos, eu olhava sua bicicleta e pensava que com uma bicicleta ele poderia ajudar apenas algumas poucas pessoas. Mas quando os comunistas tomaram o poder e fecharam nossa escola, Bac Siêu continuou, porque seu modo de trabalhar era informal. Nossos orfanatos, dispensários, escolas e centros de reassentamento foram todos fechados ou tomados pelo governo. Milhares de nossos assistentes tiveram de parar seu trabalho e se esconder. Mas Bac Siêu não tinha nada que lhe pudessem tirar. Ele era verdadeiramente um bodhisattva, trabalhando para o bem-estar dos outros. Sinto-me mais humilde agora em relação às formas de se praticar a generosidade.

 

A guerra criou muitos milhares de órfãos. Em vez de levantar dinheiro para construir orfanatos, procuramos pessoas no Ocidente para sustentar uma criança. Procuramos famílias nas aldeias para cuidar cada uma de um órfão, e então enviávamos seis dólares todo mês para a família alimentar a criança e mandá-la para a escola. Quando possível, tentávamos colocar a criança na família de uma tia, de um tio ou de um avô ou avó. Com apenas seis dólares a criança era alimentada e mandada para a escola, e ajudava-se também o restante das crianças da família. As crianças se beneficiam do crescimento no seio de uma família. Estar num orfanato pode ser como estar no exército - as crianças não se desenvolvem naturalmente. Se procurarmos e aprendermos formas de praticar a generosidade, vamos melhorar sempre.

 

Estou determinado a não roubar e não me apossar de nada que porventura pertença a outros. (...) Praticarei a observação profunda para ver que a felicidade e o sofrimento dos outros não estão separados da minha própria felicidade e sofrimento. Praticarei para ver que a verdadeira felicidade não é possível sem compreensão e compaixão – e que buscar riqueza, fama, poder e prazeres sensoriais podem gerar muito sofrimento e desespero.  Quando você pratica profundamente um dos treinamentos para a mente alerta, você descobre que está praticando todos os cinco. O primeiro treinamento para a mente alerta é sobre tirar a vida, que é uma forma de roubo - roubar o que de mais precioso uma pessoa tem, sua vida. Quando meditamos sobre o segundo treinamento para a mente alerta, vemos que roubar, nas formas de exploração, injustiça social e opressão, é um ato de matança - matança lenta através da exploração, mantendo a injustiça social e pela opressão política e econômica.

 

Portanto, o segundo treinamento para a mente alerta tem muito a ver com o treinamento para a mente alerta de não matar. Vemos o "interser" natural dos dois primeiros treinamentos para a mente alerta. Isto se aplica a todos os cinco treinamentos para a mente alerta. Algumas pessoas recebem formalmente apenas um ou dois treinamentos para a mente alerta. Eu não me importo, pois se você praticar profundamente um ou dois desses treinamentos, estará observando todos os cinco treinamentos para a mente alerta.

 

O segundo treinamento para a mente alerta é não roubar. Ao invés de roubar, explorar ou oprimir, praticamos a generosidade. No budismo, dizemos que existem três tipos de dádivas. A primeira é a dádiva dos recursos materiais. A segunda é ajudar as pessoas a confiarem em si próprias, oferecer a elas tecnologia e know-how para que andem com as próprias pernas. Ajudar as pessoas com o Dharma, para que possam transformar seu medo, sua raiva e sua depressão, faz parte do segundo tipo de dádiva. A terceira é a dádiva do não-medo. Temos medo de muitas coisas. Sentimo-nos inseguros, com medo de ficar sozinhos, com medo de adoecer e morrer. Para ajudar as pessoas a não serem destruídas por seus medos, praticamos o terceiro tipo de oferecimento de dádiva.

 

O bodhisattva Avalokitesvara é alguém que pratica isto extremamente bem. No Sutra do Coração ele nos ensina o modo de transformar e transcender o medo e navegar sorrindo sobre as ondas do nascimento e da morte. Ele diz que não existe produção, destruição, ser, não-ser, aumento e diminuição. Escutar isto nos ajuda a olhar profundamente a natureza da realidade para ver que nascimento e morte, ser e não-ser, vir e partir, aumento e diminuição são apenas idéias que atribuímos à realidade, ao passo que a realidade mesma transcende todos os conceitos. Quando nos damos conta do interser natural de todas as coisas - de que mesmo o nascimento e a morte são meros conceitos - transcendemos o medo. (...)

 

Durante minha meditação, tive uma visão maravilhosa - a forma de uma onda, seu início e seu fim. Quando as condições são apropriadas, percebemos a onda, e quando as condições já não são apropriadas, não percebemos a onda. Ondas são feitas apenas de água. Não podemos rotular a onda como existente ou não-existente. Depois da assim chamada morte da onda, nada se foi, nada se perdeu. A onda foi absorvida por outras ondas e, de alguma forma, o tempo vai trazer a onda de volta novamente. Não há aumento, diminuição, nascimento ou morte. Quando estivermos morrendo e acharmos que todos os outros estão vivos, que somos a única pessoa que está morrendo, nosso sentimento de solidão pode ser insuportável.

 

Mas se formos capazes de visualizar centenas de milhares de pessoas morrendo conosco, nossa morte pode se tornar serena e até mesmo alegre. "Estou morrendo em comunidade. Milhões de seres vivos também estão morrendo neste exato momento. Eu me vejo junto com milhões de outros seres vivos; morremos na Sangha. Ao mesmo tempo, milhões de seres estão nascendo. Todos estamos fazendo isso juntos. Eu nasci, eu estou morrendo. Nós participamos do acontecimento inteiro como uma Sangha." Foi isto que eu vi na minha meditação. No Sutra do Coração, Avalokitesvara compartilha este tipo de visão e nos ajuda a transcender o medo, a tristeza e a dor. A dádiva do não-medo produz uma transformação em nós.

 

O segundo treinamento para a mente alerta é uma prática profunda. Falamos de tempo, de energia e de recursos materiais, mas o tempo não existe apenas para energia e recursos materiais. O tempo existe para estarmos com os outros - estarmos com uma pessoa morrendo ou com alguém que está sofrendo. Estar realmente presente, mesmo que por cinco minutos, pode ser uma dádiva importante. O tempo não existe apenas para ganhar dinheiro. Existe para produzir a dádiva do Dharma e a dádiva do não-medo.

 

(Do livro “Os cinco treinamentos para a mente alerta” – Thich Nhat Hanh)

 

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(*) Desde julho de 2009  o Primeiro Treinamento passou a ter essa redação.

 

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