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Tradição do Ven. Thich Nhat Hanh

 

Os Cinco Treinamentos de Plena Atenção - Quarto Treinamento – Fala Amável e Escuta Profunda

 

Consciente do sofrimento causado pela fala inconsequente e por minha falta de habilidade em ouvir os outros, eu me comprometo a cultivar a fala amável e a escuta compassiva para aliviar o sofrimento, e promover a reconciliação e a paz em mim mesmo e entre as pessoas, grupos religiosos, étnicos e nações. Sabendo que a as palavras podem criar tanto felicidade quanto sofrimento, eu me comprometo a falar a verdade com palavras que inspirem confiança, alegria e esperança. Ao perceber a raiva se manifestando em mim, eu me comprometo a não falar. Praticarei a respiração e o caminhar em plena consciência para reconhecer minha raiva e olhar com profundidade suas raízes – especialmente no caso de percepções errôneas ou falta de compreensão do meu próprio sofrimento e do sofrimento de outras pessoas. Falarei e escutarei de modo a aliviar o sofrimento, tanto em mim quanto nos demais, e a resolver situações difíceis. Eu me comprometo a não espalhar notícias das quais não tenha certeza e a não usar palavras que possam causar divisão ou discórdia. Praticarei a Diligência Correta como um meio de nutrir minha capacidade de compreensão, amor, alegria e inclusão, e também para transformar gradativamente a raiva, a violência e o medo presentes em minha consciência.

 

Existe um ditado vietnamita que diz: "Não custa nada ser amável ao falar". Basta escolher com cuidado nossas palavras, e podemos fazer as outras pessoas felizes. Usar as palavras conscientemente, com amabilidade, é praticar a generosidade. Por isso este treinamento está diretamente ligado ao segundo treinamento para a mente alerta. Podemos fazer muitas pessoas felizes, praticando tão somente o modo de falar amável. Novamente vemos o caráter de interser dos cinco treinamentos para a mente alerta.

 

Muitas pessoas acham que só serão capazes de praticar a generosidade depois que acumularem uma pequena fortuna. Conheço jovens que sonham em ficar ricos para poderem levar a felicidade aos outros: "Quero ter o título de doutor ou ser presidente de uma grande empresa para ganhar muito dinheiro e ajudar muitas pessoas". Eles não percebem que normalmente é mais difícil praticar a generosidade depois de ficar rico. Se você é motivado pela gentileza amorosa e pela compaixão, há muitas formas de levar a felicidade aos outros agora mesmo, começando pela maneira amável de falar. O seu modo de falar com os outros pode dar a eles alegria, felicidade, autoconfiança, esperança, lealdade e iluminação. O modo de falar consciente é uma prática profunda.

 

Avalokitesvara Bodhisattva é uma pessoa que aprendeu a arte de escutar e falar profundamente para ajudar as pessoas a se livrarem de seu medo, miséria e desespero. Ele é o modelo desta prática, e a porta que ele abre é chamada "porta universal." Se praticarmos o escutar e o falar de acordo com Avalokitesvara, também nós seremos capazes de abrir a porta universal e levar alegria, paz e felicidade a muitas pessoas e aliviar seu sofrimento. (...)

 

Durante a época do Buda, o objetivo da prática de muitas pessoas era nascer e viver junto com Brahma. Era semelhante à prática cristã de querer ir para o céu, para estar com Deus. "Na casa de meu Pai há muitas moradas", e você quer viver numa dessas moradas. Para aqueles que queriam estar com Brahma, o Buda disse: "Pratique as quatro nobres moradas: amor, compaixão, alegria e equanimidade." Se quisermos compartilhar o ensinamento do Buda com nossos amigos cristãos, o conteúdo é o mesmo: "Deus é amor, compaixão, alegria e imparcialidade." Se você quer estar com Deus, pratique estas quatro moradas. Se não as praticar, por mais que ore ou fale sobre estar com Deus, não será possível ir para o céu. (...)

 

Por viver uma vida consciente, sempre contemplando o mundo, e por ser o observador do mundo, Avalokitesvara presencia muito sofrimento. Ele sabe que muito sofrimento nasce da fala descuidada e da incapacidade de escutar os. outros; portanto ele pratica a fala consciente e amável e a escuta profunda. Avalokitesvara pode ser descrito como aquele que nos ensina a melhor forma de praticar o quarto treinamento para a mente alerta.

 

"Consciente do sofrimento causado pela fala inconsequente e por minha falta de habilidade em ouvir os outros, eu me comprometo a cultivar a fala amável e a escuta compassiva para aliviar o sofrimento, e promover a reconciliação e a paz em mim mesmo e entre as pessoas, grupos religiosos, étnicos e nações." Esta é exatamente a porta universal praticada por Avalokitesvara.

 

Nunca na história da humanidade tivemos tantos meios de comunicação - televisão, telecomunicações, telefones, aparelhos de fax, rádios sem fio, hot lines e red lines - mas ainda permanecemos como ilhas. Há tão pouca comunicação entre os membros de uma família, entre os indivíduos na sociedade e entre as nações. Sofremos de tantas guerras e conflitos. Certamente não cultivamos a arte da escuta e da fala. Não sabemos como escutar um ao outro. Temos pouca capacidade de manter uma conversa inteligente ou significativa. A porta universal da comunicação deve ser aberta novamente.

 

Quando não podemos nos comunicar, ficamos doentes e, à medida que nossa doença aumenta, sofremos, e nosso sofrimento contagia outras pessoas. Contratamos os serviços de psicoterapeutas para escutar nosso sofrimento, mas, se eles não praticarem a porta universal, não serão bem sucedidos. Os psicoterapeutas são seres humanos sujeitos ao sofrimento como todos nós. Podem ter problemas com seu cônjuge, filhos, amigos e com a sociedade. Eles também têm bloqueios internos. Talvez tenham muito sofrimento que não pode ser partilhado nem mesmo com a pessoa mais amada de sua vida. Como podem ficar sentados, ouvir e compreender o nosso sofrimento? Os psicoterapeutas têm de praticar a porta universal, o quarto treinamento para a mente alerta - escutar com atenção e falar com muito cuidado.

 

Se não olharmos profundamente para dentro de nós mesmos, essa prática não será fácil. Se houver muito sofrimento dentro de você, é difícil escutar as outras pessoas ou dizer-lhes coisas belas e agradáveis. Primeiro você tem de olhar profundamente para a natureza da sua raiva, de seu desespero e do seu sofrimento, a fim de se libertar e disponibilizar para os outros.

 

Suponhamos que seu marido tenha dito algo rude na segunda-feira, que a magoou muito. Ele usou uma linguagem descuidada e não tem capacidade de escutar. Se você responde na mesma hora, a partir de sua raiva e do seu sofrimento, você se arrisca a magoá-lo também e a tornar seu sofrimento ainda mais profundo. O que você deve fazer? Se você passar por cima da sua raiva ou permanecer em silêncio, isto pode machucá-la, porque, se você tentar passar por cima da raiva que está dentro de você, estará passando por cima de você mesma. Você vai sofrer mais tarde, e seu sofrimento vai trazer mais sofrimento para o seu parceiro.

 

A melhor prática do momento é inspirar e expirar para acalmar sua raiva, para acalmar a dor: "Inspirando, eu sei que estou com raiva. Expirando, eu acalmo meu sentimento de raiva". Basta respirar profundamente sobre sua raiva, que você vai acalmá-la. Você está tendo plena consciência de sua raiva, não passando por cima dela. Quando estiver calma o bastante, você poderá ser capaz de usar uma linguagem bem consciente. De maneira amorosa e consciente, você pode dizer: "Querido, queria que soubesse que estou zangada. O que você disse me feriu muito, e eu quero que saiba disso". O simples fato de dizer isto consciente e calmamente vai trazer-lhe algum alívio.

 

Respirando conscientemente para acalmar sua raiva, você será capaz de dizer à outra pessoa que você está sofrendo. Durante esse momento você está vivendo sua raiva, lidando com ela com a energia da mente alerta. Você não está de forma alguma negando a raiva.

 

Quando eu falo sobre isto com psicoterapeutas, tenho certa dificuldade. Quando eu digo que a raiva nos faz sofrer, eles consideram que a raiva é algo negativo a ser removido. Mas eu sempre digo que a raiva é algo orgânico, como o amor. A raiva pode tornar-se amor. Nosso adubo pode tornar-se uma rosa. Se soubermos como cuidar do nosso adubo, podemos transformá-lo numa rosa. Devemos considerar o lixo negativo ou positivo? Ele pode ser positivo, se soubermos como lidar com ele. Com a raiva é a mesma coisa. Ela pode ser negativa, quando não sabemos como lidar com ela; mas, se soubermos como lidar com a nossa raiva, ela pode ser muito positiva. Não precisamos jogar nada fora.

 

Depois de inspirar e expirar certo número de vezes para recuperar sua calma, mesmo que sua raiva ainda esteja presente, você tem plena consciência dela e pode dizer à outra pessoa que você está com raiva. Também pode dizer que você gostaria de examiná-la profundamente, e gostaria que ele também a examinasse profundamente. Então vocês podem marcar uma hora na sexta-feira à noite para examiná-la juntos. Uma pessoa examinando as raízes do seu sofrimento é bom, duas pessoas examinando é melhor ainda e duas pessoas examinando juntas é a melhor opção de todas.

 

Eu proponho sexta à noite por duas razões. Primeira, você ainda está zangada e, se começar a discutir agora, pode ser muito arriscado. Você pode dizer coisas que vão piorar ainda mais a situação. De agora até sexta à noite você pode praticar a análise profunda da natureza da sua raiva e a outra pessoa também pode. Enquanto dirige o carro, ele pode perguntar a si mesmo: "O que houve de tão sério? Por que ela ficou tão furiosa? Deve haver uma razão". Enquanto você dirige, também terá chance de examiná-la profundamente. Antes de chegar sexta à noite, um de vocês ou ambos podem ver as raízes do problema e ser capazes de dizer tudo ao outro e pedir desculpas. Então, na sexta à noite, podem tomar um xícara de chá juntos e curtir um ao outro. Se marcarem uma hora, ambos terão tempo para se acalmar e analisar profundamente. Esta é a prática da meditação. Meditação é acalmar-nos e analisar profundamente a natureza do nosso sofrimento.

 

Quando chegar a noite de sexta, se o sofrimento ainda não tiver sido transformado, vocês poderão praticar a arte de Avalokitesvara. Sentam-se juntos e praticam a escuta profunda – uma pessoa fala e a outra escuta profundamente. Quando você fala, vai usar a forma mais profunda da verdade e praticar a fala amável. Somente usando esta forma de linguagem é que haverá uma chance de a outra pessoa entender e aceitar.

 

Ao ouvir, você sabe que é só com a escuta profunda que você vai poder aliviar o sofrimento da outra pessoa. Se você escutar sem dar ouvidos, você não consegue nada. Sua presença deve ser profunda e real. Sua escuta deve ser de boa qualidade para aliviar a outra pessoa de seu sofrimento.

 

Esta é a prática do quarto treinamento para a mente alerta. A segunda razão para esperar até sexta é que, se você neutraliza este sentimento na sexta à noite, vocês têm sábado e domingo para aproveitarem juntos.(...)

 

A fala pode ser construtiva ou destrutiva. Falar com consciência plena pode trazer felicidade real; a fala sem consciência pode matar. Quando alguém nos diz alguma coisa que nos anima e alegra, este é o maior presente que nos pode dar. Às vezes, alguém nos diz alguma coisa tão cruel e aflitiva que gostaríamos de fugir e cometer suicídio; perdemos toda a esperança, toda nossa joie de vivre (alegria de viver).

 

As pessoas matam por causa da linguagem, do modo de falar. Quando você defende fanaticamente uma ideologia, dizendo que esta forma de pensar ou de organizar a sociedade é a melhor, e alguém se coloca no seu caminho, você tem de suprimi-lo ou eliminá-lo. Isto está muito ligado ao primeiro treinamento para a mente alerta - esse modo de falar pode matar não só uma pessoa, mas muitas. Quando você acredita em alguma coisa com força extrema, é capaz de atirar milhões de pessoas em câmaras de gás. Quando você usa a linguagem para promover uma ideologia, conclamando as pessoas a matar para proteger e promover a sua ideologia, você pode matar milhões. O primeiro e o quarto dos cinco treinamentos para a mente alerta estão interligados.

 

O quarto treinamento para a mente alerta também está ligado ao segundo treinamento para a mente alerta, sobre roubar. Assim como existe uma "indústria do sexo", existe uma "indústria da mentira". Muitas pessoas precisam mentir para ter sucesso como políticos ou vendedores. Um diretor de uma empresa de comunicações me disse que se lhe fosse permitido dizer a verdade sobre os produtos de sua companhia, as pessoas não os comprariam. Ele diz coisas positivas sobre os produtos, mas sabe que não correspondem à verdade; evita falar dos efeitos negativos dos produtos. Ele sabe que está mentindo e sente-se mal com isso. Muitas pessoas estão presas a situações parecidas. Também na política as pessoas mentem para angariar votos. É por isso que podemos falar de uma "indústria da mentira".

 

(Do livro “Os cinco treinamentos para a mente alerta” – Thich Nhat Hanh)

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