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 Estudos Budistas

Tradição do Ven. Thich Nhat Hanh

 

A segunda flecha

 

Algumas das situações e acidentes que nos causam o maior sofrimento, quando vistos objetivamente, não parecem muito grandes. Mas porque não sabemos como gerenciá-las, elas parecem enormes. Se perdermos um ente querido, é claro que isso é uma grande perda. Há dor real, e sentimos isso com força. Mas também podemos passar dias nos preocupando se alguém não gosta de nós, ou que não dissemos ou fizemos a coisa certa, ou ainda que não obteremos a promoção que queremos. Estes são pequenos sofrimentos, relativamente falando, mas nós os ampliamos até parecerem ocupar todo o nosso espaço mental.

 

Se sabemos como lidar com os pequenos sofrimentos, não precisamos sofrer diariamente. Podemos praticar o abandono do que os franceses chamam les petites miseres, as pequenas misérias e economizar nossa energia para abraçar e aliviar as verdadeiras dores de doenças e das perdas que são inevitáveis.

 

Há um ensinamento budista encontrado no Sallatha Sutta, conhecido como “a Flecha”. Ele diz se uma flecha te atinge, você sentirá dor naquela parte do seu corpo; e então, se uma segunda flecha chegar e atingir exatamente o mesmo ponto, a dor não será apenas o dobro, será pelo menos dez vezes mais intensa.

 

As coisas indesejadas que às vezes acontecem na vida - ser rejeitado, perder um objeto valioso, falhar em um teste ou se machucar em um acidente - são análogas à primeira seta. Elas causam alguma dor. A segunda flecha, disparada por nós mesmos, é nossa reação, nossa história e nossa ansiedade. Todas essas coisas ampliam o sofrimento. Muitas vezes, o desastre final em que estamos ruminando ainda não aconteceu. Podemos nos preocupar, por exemplo, que podemos ter um câncer e que vamos morrer em breve. Nós não sabemos, e nosso medo do desconhecido faz a dor aumentar ainda mais.

 

A segunda seta pode assumir a forma de julgamento ("como eu pude ser tão estúpido?"), medo ("e se a dor não desaparecer?"), ou raiva ("eu odeio que estou com dor. Não mereço isso! "). Podemos conjurar rapidamente um reino infernal de negatividade em nossas mentes que multiplica o estresse do evento real, por dez vezes ou mesmo mais. Parte da arte de sofrer bem é aprender a não magnificar a nossa dor ao se deixar levar pelo medo, raiva e desespero. Nós construímos e mantemos nossas reservas de energia para lidar com os grandes sofrimentos; os pequenos sofrimentos podemos deixa-los ir embora.

 

Se você perder o emprego, claro que é uma resposta normal sentir medo e ansiedade. É verdade que na maioria dos casos estar sem trabalho é um sofrimento; e existe um risco real se você não tiver o suficiente para comer ou não puder pagar os medicamentos necessários. Mas você não precisa piorar esse sofrimento ao girar histórias em sua cabeça que são muito piores do que a realidade. Algumas pessoas nesta situação podem pensar: "Não sou bom nisso ou aquilo", ou "Nunca vou conseguir outro emprego", ou "Eu falhei com minha família". É importante lembrar que tudo é impermanente. Um sofrimento pode surgir - ou pode resolver-se - para qualquer um, em qualquer momento.

 

Em vez de jogar boa energia fora ao se condenar ou ficar obcecado com as catástrofes que podem estar à espreita na esquina, você poderia estar sintonizado com o verdadeiro sofrimento que está bem na sua frente, com o que está acontecendo agora. Atenção plena (mindfulness) é reconhecer o que está lá no momento presente. O sofrimento existe, sim; mas o que também existe é que você ainda está vivo: "Respirando, eu sei que estou vivo". Seus olhos ainda funcionam: "Respirando, estou ciente dos meus olhos. Respirando, sorrio para os meus olhos".

 

Ter olhos em boas condições é uma coisa maravilhosa. Porque você tem olhos em boas condições, há um paraíso de formas e cores disponíveis para você a cada momento. Há aqueles entre nós que ficaram cegos. Eles perderam esse caleidoscópio de formas e cores sem fim; e o que eles querem mais do que qualquer outra coisa é ter essa faculdade novamente. Você só precisa abrir os olhos para entrar em contato com esse caleidoscópio. É um paraíso, se você apenas parar para notar e apreciá-lo. Se você tem os olhos em boas condições, basta abri-los e aproveitar o que vê. A felicidade é possível imediatamente, mesmo que nem tudo seja perfeito.

 

Quando você olha para a pessoa que ama, e ela está absorvida pela ansiedade, você pode ajudá-la a sair desse estado. "Você vê o pôr-do-sol? Você vê a primavera chegando?" Esta é a atenção plena. Atenção plena serve para nos conscientizar do que está acontecendo agora. Não apenas há sempre condições de felicidade presentes em mim, mas também ao meu redor.

 

A maioria das segundas flechas com as quais nos disparamos vem de nossas crenças. Um problema básico que nos faz sofrer é a ideia de que somos um eu separado. Isso dá origem aos complexos de inferioridade, superioridade e igualdade. Enquanto tivermos a ideia de um eu, tentamos proteger esse eu, fugindo de todos os tipos de ameaças e desconfortos. Se há alguma solidão, alguma raiva, ou algum medo, não gostamos e tentamos fingir que o sofrimento não existe. "Não é nada", dizemos, tentando nervosamente varrer todos os sentimentos para debaixo do tapete.

 

Criamos dor desnecessária quando a nossa reação a um evento desagradável é comparar nosso eu com outros e reforçar nossa ilusão de separação. Podemos sentir uma satisfação fugaz quando dizemos a nós mesmos: "Sou melhor do que ele. Não me importo com o que ele diz". Esse é o complexo de superioridade. Ou podemos tentar imunizar-nos de desapontamentos ao pensar: "Eu nunca serei tão bom como ela é. Não há sentido em tentar". Esse é o complexo de inferioridade. A maioria das pessoas pensa que a melhor maneira de lidar com esses complexos é manter a crença: "Eu sou igual". Mas isso também é um complexo inventado pela mente comparativa.

 

A igualdade, quando se refere a oportunidade e acesso a recursos, em outras palavras, ao tratar as necessidades e sentimentos de todos com respeito, é uma coisa boa. Mas o constante esforço para provar a si mesmo igual a todos os outros traz apenas um alívio de curta duração da dor da discriminação - e, finalmente, cria mais sofrimento porque perpetua nossa crença incorreta em um eu separado. Se pensarmos: "Eu reivindico o direito de ser tão bom como ele é", ainda existe a ideia de um eu separado, e, portanto, sempre haverá comparação. Enquanto você continuar a comparar, você sofre o medo de parecer pior; E, pior ainda, você fica preso em uma constante e dolorosa ilusão de isolamento e alienação.

 

(Trecho do livro de Thich Nhat Hanh – No mud no lotus)

(Tradução – Leonardo Dobbin)

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