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 Estudos Budistas

Tradição do Ven. Thich Nhat Hanh

 

Abraçando a raiva

 

O Buda nunca nos aconselhou a reprimir a raiva. Ele nos ensinou a nos voltarmos para dentro de nós mesmos e cuidarmos bem dela. Quando existe algo fisicamente errado conosco, com nosso intestino, estômago ou fígado, temos que parar e cuidar deles. Fazemos tudo o que é possível para corrigir o problema, mas não o desconhecemos.

 

Assim como nossos órgãos, nossa raiva faz parte de nós. Quando estamos zangados, temos que nos voltar para nós mesmos e cuidar bem da nossa raiva. Não podemos dizer: "Vá embora raiva, você tem que ir. Não quero você." Precisamos reconhecê-la, abraçá-la e sorrir. A energia que nos ajuda a fazer essas coisas é a da mente alerta, a do andar e respirar com plena consciência. Não é preciso que você oculte a sua raiva. Você tem que deixar a outra pessoa saber que você está sentindo raiva e que está sofrendo. Isso é muito importante. Quando você se zangar com alguém, por favor, não finja que não está sentindo raiva. Não finja que não está sofrendo. Se você ama a outra pessoa, confesse que está com raiva e que está sofrendo. Mas diga isso a ela quando puder fazê-lo de um jeito calmo.

 

No verdadeiro amor, não existe orgulho. Você não pode fingir que não está sofrendo ou que não está sentindo raiva, porque esse tipo de negação se baseia no orgulho. "Com raiva? Eu? Por que eu sentiria raiva? Eu estou muito bem." Mas na verdade você não está bem. Você está no inferno. Quando a raiva nos está consumindo, precisamos dizer isso ao nosso companheiro, ao nosso filho ou filha. Sentimos muitas vezes vontade de dizer: "Não preciso de você para ser feliz!" Além de não ser verdade, esta frase é uma traição da promessa que fizemos ao nosso cônjuge e aos nossos filhos de compartilhar todas as coisas.

 

No início vocês disseram um ao outro: "Não posso viver sem você. Minha felicidade depende de você." É possível que, com o desgaste, o amor acabe. Mas quando o amor permanece, e apesar disso o outro fez algo que provocou raiva, você é capaz de afirmar coisas como: "Não preciso de você. Não chegue perto de mim! Não me toque!" Você vai para seu quarto e tranca a porta, querendo demonstrar que não precisa da outra pessoa. Esta é uma tendência muito humana e comum. Mas não é sábia. A felicidade não é uma questão individual. Se um de vocês não está feliz, é impossível que o outro esteja.

 

1. "Meu amor, estou com raiva, estou sofrendo"

 

Dizer "Meu amor, eu amo você" é bom e é importante. É natural que compartilhemos nossas alegrias e sentimentos positivos com a pessoa que amamos. Mas é também preciso deixar que ela saiba quando você estiver sofrendo e sentindo raiva dela. Você tem que expressar seus sentimentos. É um direito seu. Este é o verdadeiro amor. "Meu amor, estou com raiva de você. Estou sofrendo." Espere até poder dizer o mais tranqüilamente possível esta frase. Sua voz talvez esteja um pouco triste, o que é aceitável. Apenas não diga uma única palavra se a intenção for punir ou culpar o outro. "Meu bem, estou com raiva, estou sofrendo e quero que você saiba disso." Esta é a linguagem do amor, porque vocês prometeram apoiar um ao outro, como companheiros, como marido e mulher, como pai e filho, mãe e filha. Por isso, insisto: expresse o que está sentindo, não para punir ou acusar, mas para construir.

 

Você não tem apenas o direito de dizer à outra pessoa que está sofrendo, tem também o dever. Quando estiver feliz, compartilhe com o outro sua felicidade. Quando estiver sofrendo, converse com a pessoa querida sobre seu sofrimento. Mesmo que você ache que a raiva que está sentindo foi criada por ela, você precisa manter seu compromisso. Espere um momento de maior calma, conquistado com a respiração e o andar conscientes, e descreva para ela seus sentimentos. Use palavras carinhosas. Esta é a única condição. Faça isso o mais rápido possível. Não guarde a raiva e o sofrimento dentro de você por mais de vinte e quatro horas, caso contrário eles se tornam excessivos e podem envenenar você, comprometendo a possibilidade de um bom entendimento. Assim, converse com quem lhe causou a raiva e o sofrimento o mais breve possível. Vinte e quatro horas é o prazo máximo.

 

Você pode achar que não é capaz de contar à outra pessoa o que está sentindo porque ainda não adquiriu a calma necessária. Você ainda sente muita raiva. Pratique então a ar livre a respiração e o andar conscientes. Depois, quando tiver atingido uma tranqüilidade maior e se preparado o suficiente, pode falar. No entanto, se o prazo final se aproximar, e você não tiver atingido a calma que deseja, ponha por escrito o que está sentindo. Escreva um bilhete de paz, uma mensagem de paz. Envie a carta para a pessoa que você ama e tome providências para que ela a receba antes que o prazo de vinte e quatro horas tenha se esgotado. Isso é extremamente importante. Prometam agir dessa maneira quando ficarem com raiva um do outro. Caso contrário, vocês não estarão respeitando os termos do seu tratado de paz.

 

2. "Estou fazendo o melhor que posso"

 

Quando for transmitir o que está sentindo, você pode acrescentar outra frase: "Estou fazendo o melhor que eu posso." Esta frase significa que você está evitando agir a partir da raiva. Significa que você está praticando a respiração e o andar conscientes para acolher e abraçar a raiva com plena consciência. Nunca diga "Estou fazendo o melhor que posso", a não ser que esteja mesmo se dedicando à prática. Se a frase for sincera, ela despertará a confiança e o respeito na outra pessoa. "Estou fazendo o melhor que eu posso" significa que você está de fato se voltando para dentro de si e procurando cuidar bem da sua raiva.

 

Enquanto você abraça a raiva, você procura examinar profundamente a natureza dela. Talvez você tenha sido vítima de uma percepção errada. Talvez tenha interpretado mal o que ouviu e o que viu. A raiva pode nascer dessa ignorância e de percepções erradas. Ao dizer "Estou fazendo o melhor que posso", é bom estar consciente de que no passado você se irritou muitas vezes por ter percebido erradamente ou interpretado maio que estava acontecendo. Isso lhe ensinou a usar de extrema cautela. Você se lembra que não deve ter tanta certeza de ser vítima do que considera como as más ações da outra pessoa. Você pode ter criado o inferno dentro de você.

 

3. "Por favor, me ajude"

 

A terceira frase vem naturalmente. "Por favor, me ajude. Meu amor, eu preciso de você." Esta é a linguagem do verdadeiro amor. Quando você se zanga com a outra pessoa, sua tendência é dizer o oposto: "Não me toque! Não preciso de você. Eu consigo me virar perfeitamente sem você. Vocês assumiram o compromisso de cuidar bem um do outro. Por isso, é muito natural que, além da prática da plena consciência, você ainda precise da ajuda da outra pessoa. "Meu bem, eu preciso da sua ajuda. Por favor, me ajude." Se você é capaz de escrever ou dizer essas três frases, é capaz de sentir o verdadeiro amor.

 

Você está usando a autêntica linguagem do amor. "Meu amor, estou sofrendo e quero que você saiba disso. Meu bem, estou fazendo o melhor que eu posso. Estou tentando não culpar ninguém, inclusive você. Como estamos tão próximos um do outro, como assumimos um compromisso um com o outro, sinto que preciso do seu apoio e da sua ajuda para sair desse estado de sofrimento, de raiva." Usar as três frases para se comunicar com a outra pessoa pode rapidamente fazer com que ela se sinta aliviada e tranqüila. Essa maneira de lidar com a raiva despertará uma grande dose de confiança e respeito tanto na outra pessoa quanto em você. Não é muito difícil fazer isso.

 

Se eu fosse a outra pessoa e você me dissesse essas três frases, eu perceberia que você é fiel a mim, que seu amor por mim é verdadeiro. Não é apenas quando estamos felizes que devemos compartilhar nossa felicidade; quando sofremos, devemos dividir nossa tristeza. Quando você me diz que está fazendo o melhor que pode, sinto-me confiante e acabo também fazendo o melhor que posso. Eu me volto para dentro de mim mesmo e para a prática. Se quero merecer você, tenho que me examinar profundamente e também fazer o melhor possível.

 

Preciso me perguntar: "O que eu disse, o que eu fiz para levar essa pessoa a sofrer assim? Por que eu fiz isso?" Ao ouvir suas palavras, ao ler o Bilhete de Paz que você me entregou, eu consigo me recuperar e encontrar dentro de mim à energia da plena consciência. Eu direi ao ser amado: "Meu amor, eu também estou fazendo o melhor que posso."

 

É maravilhoso: vocês dois estão praticando. Não existe mais perigo. Vocês se voltaram para si mesmos, dedicaram-se à prática do exame profundo para compreenderem verdadeiramente a situação. Se, durante esse tempo, um de vocês conseguir perceber o que realmente está acontecendo, terá que contar imediatamente ao outro o que descobriu.

 

Se você tomar consciência de que se zangou por causa de uma percepção errada, transmita isso à outra pessoa. Você precisa deixar que ela saiba que você tem pena de ter sentido raiva sem nenhum motivo. Ela não fez nada errado. Você se irritou porque interpretou mal a situação. Telefone logo para ela, passe um fax, mande um e-mail, porque ela ainda está muito abalada com o seu sofrimento. Quando você contar o que houve, ela sentirá um alívio imediato.

 

Quando você admite que se enganou, ajuda a outra pessoa a perceber que ela também disse ou fez alguma coisa por estar irritada ou por causa de uma percepção errada. Ela então compartilha com você essa descoberta. "Meu bem, no outro dia eu entendi mal as coisas. Fiz algo desagradável e percebo que isso aconteceu porque cedi à impulsividade e não parei para pensar. Não tive a intenção de fazer você sofrer. Peço desculpas e prometo que da próxima vez procurarei agir com mais serenidade e serei mais consciente." Qualquer um que receba essa mensagem pára de sofrer e, no fundo do coração, sente um grande respeito pela outra pessoa, o que contribui para o crescimento do amor e do companheirismo. (...)

 

Usar as três frases do amor verdadeiro e fazer um exame profundo para aceitar nossa responsabilidade no conflito é uma maneira bastante concreta de expressar respeito, alimentar o amor. Não subestimem as três frases do verdadeiro amor. Talvez vocês queiram escrever as três frases num pedaço de papel e colocá-lo na carteira. Venerem esse pedaço de papel como algo que pode salvar vocês, porque ele os fará lembrar do compromisso que assumiram um com o outro.

 

Algumas pessoas guardam no bolso um belo seixo para se lembrarem desses ensinamentos. Todas as vezes que colocam a mão no bolso e tocam a pequena pedra, praticam a respiração e o andar conscientes e se sentem muito tranqüilas. Quando surge a raiva, a pedra as faz lembrar das três frases. O simples fato de segurar a pedra e inalar e exalar o ar sorrindo e com calma pode ser de grande ajuda. A prática pode parecer um pouco infantil, mas é extremamente útil. Quando estamos envolvidos no turbilhão do cotidiano, muitas vezes nos esquecemos de praticar aquilo que nos pode ajudar muito. Assim, a pequena pedra no seu bolso atua como mestre, como companheira de prática é um sino de consciência que permite que você faça uma pausa e retome à respiração.

 

A pedra é um lembrete de que seu mestre está sempre com você, que seus irmãos e irmãs no darma estão sempre ao seu lado. Ela servirá de ajuda para que o amor nasça em você e se mantenha vivo dentro de você. Ela pode ajudar a manter viva a iluminação em você.  

 

(Do livro “Aprendendo a lidar com a raiva”  de Thich Nhat Hanh)

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