Sangha Virtual

 Estudos Budistas

Tradição do Ven. Thich Nhat Hanh

 

Ação: Por que salvar um grupo de formigas é bom

 

Alguns anos atrás, eu estava em uma viagem de canoa em uma remota região dos lagos ao norte de Ontário com um namorado chamado Doug e dois de seus amigos. Uma noite, nós quatro ficamos um pouco desesperados em busca de um acampamento adequado antes do anoitecer. Um dos últimos locais disponíveis tinha sido invadido por muitas formigas pretas, provavelmente juntas no mais gigantesco formigueiro conhecido pelo homem.

 

Se alguém tivesse estado por perto, teria visto quatro campistas muito cansados, pás na mão, olhando boquiabertos impotentes para uma colônia de insetos rastejantes. Finalmente o silêncio foi quebrado quando o amigo de Doug anunciou que devíamos derramar fluido de isqueiro sobre o formigueiro e queimar as formigas. Dizer que fiquei horrorizada com a idéia de incendiar a casa das formigas, mesmo ameaçadoras como eram, seria um eufemismo. Virei-me para Doug e disse que eu não estava disposta a fazer parte de nenhum grupo de queima de formigas. Doug sinceramente concordou.

 

Karma significa simplesmente "ação" e há três tipos: pensamento, fala e ação corporal. Seus pensamentos têm poder, as suas palavras têm poder e suas ações corporais têm poder. Tudo o que você pensar, dizer e fizer vai produzir uma cadeia de ações e reações, com conseqüências infinitas e incognoscíveis. Você não pode pegar de volta o seu comportamento feio. Em seu livro "Buddha Mind, Buddha Body", Thây enfatiza que não há como escapar: "Seu comportamento não tão bonito saiu imediatamente em direção ao futuro e começou uma reação em cadeia."

 

Pode parecer insignificante queimar um monte de formigas, mas na verdade esse tipo de coisa é feita todos os dias porque os seres humanos são muito frequentemente míopes e egoístas. Este pensamento errôneo levou à destruição e ao desequilíbrio ambiental, como o renomado entomólogo E. O. Wilson advertiu: "Se os insetos desaparecessem, o ambiente terrestre em breve colapsaria no caos ..."

 

Aparentemente, as formigas movem mais terra do que as minhocas, tornando-se essenciais para o solo. E, claro, precisamos do solo renovado para flores e plantas sobreviverem. Mas se proteger a vegetação que comemos não é um incentivo suficiente para observar nossas ações, há sempre esta parábola budista, que me deparei muitos anos depois do caso das formigas.

 

Era uma vez um velho monge que, através da prática diligente, tinha alcançado um certo grau de penetração espiritual. Este monge tinha um iniciante jovem de oito anos de idade. Um dia, o monge olhou para o rosto do menino e viu que ele morreria dentro dos próximos meses. Entristecido por isto, o monge disse ao menino para desfrutar de um longo feriado e ir visitar seus pais. "Tome o tempo que quiser", disse o monge. "Não se apresse para voltar." Ele sentiu que o menino deveria estar com sua família quando morresse.

 

Três meses depois, para espanto do monge, ele viu o garoto andando de volta até a montanha. Quando o rapaz chegou, o monge olhou fixamente para o rosto e viu que o menino agora viveria até uma idade madura. "Diga-me tudo o que aconteceu enquanto você estava fora", disse o monge. O rapaz falou de sua viagem ao descer a montanha, das aldeias que passou, das passagens por rios e as montanhas que escalou.

 

Então o menino disse ao monge que um dia ele se deparou com um córrego inundado. À medida que o menino tentava atravessar a corrente que fluía, percebeu que uma colônia de formigas tinha ficado presa em uma pequena ilha formada pela enxurrada. Movido por compaixão por essas pobres criaturas, o menino pegou um galho de árvore e colocou-o em uma parte do fluxo até que ele tocasse a pequena ilha. Enquanto as formigas atravessavam, o garoto segurava o ramo estável, até que teve certeza de que todas as formigas tinham escapado para terra firme. "Então", pensou o velho monge, "é por isso que os deuses tinham aumentado seus dias."

 

Em seu livro "A arte do poder", Thich Nhat Hanh enfatiza que "A qualidade de sua ação depende da qualidade do seu ser." Se você não está feliz, por exemplo, é impossível oferecer a verdadeira felicidade a qualquer outro ser. "Então, há uma ligação entre fazer e ser. Se não tiver êxito em ser, você não pode ter êxito em fazer."

 

Eu estou sentada no Salão de Dharma de Upper Hamlet ouvindo Thich Nhat Hanh explicar que é possível neutralizar o karma que geramos. Thay descreve como a plena consciência (mindfulness) pode abraçar uma ação não saudável a fim de neutralizar os seus efeitos, e que a plena consciência também poderia iniciar algum tipo de ação saudável. Assim, poderia ter havido uma saída para o nosso bando de campistas quase imprudentes anos atrás, mesmo que tivéssemos sido arrogantes o suficiente para queimar um monte de formigas.

 

Antes de contar o seguinte evento sombrio da Guerra do Vietnã, Thay diz: "A plena  consciência não cura só o presente mas também o passado e o futuro." Anos após a Guerra do Vietnã, Thich Nhat Hanh organizou retiros de meditação para veteranos de guerra dos EUA. Em um desses retiros, havia um ex-soldado extremamente traumatizado. Este veterano tinha involuntariamente contribuído para a morte de cinco crianças vietnamitas durante a guerra. A unidade do soldado americano tinha sido destruída por guerrilheiros vietnamitas, causando a morte de muitos soldados. Em sua tristeza e raiva, o soldado buscou a retaliação pelas mortes.

 

Ele inseriu explosivos em sanduíches e, em seguida, os colocou onde os mesmos soldados vietnamitas iriam encontrá-los e comê-los. Em vez dos soldados, porém, cinco crianças vietnamitas encontraram os sanduíches envenenados. Ao testemunhar a terrível cena, o soldado dos EUA ficou cheio de temor. Ele sabia que não havia nenhuma maneira de salvar as crianças inocentes. O hospital estava a quilômetros de distância. As crianças tiveram uma morte agonizante. O veterano de guerra americano tinha vivido uma vida de culpa torturando-se por muitos anos.

 

Thay nos diz que antes do veterano de guerra lhe contar sua história no retiro, ele não tinha falado sobre isso com ninguém, exceto sua mãe, e ela não tinha sido capaz de aliviar sua culpa. Depois da guerra, em qualquer momento que o ex-soldado se visse perto de crianças, o seu sofrimento tornava-se imenso. Ele não conseguia estar na presença de nenhuma criança, tão forte era o seu remorso e dor.

 

Thây passou a explicar que, ao saber da morte das cinco crianças, ele havia dito ao veterano que as mortes das crianças não tinham sido uma coisa boa. Que o karma não era bom. Mas era possível que este soldado fizesse outra coisa, algo bom para neutralizar essa ação ruim de seu passado. Thich Nhat Hanh lembrou ao veterano que todos os dias crianças estavam morrendo em muitos países, e por razões simples, como a falta de um comprimido de medicamento. Thay disse ao veterano de guerra que era possível para ele fazer alguma coisa naquele momento. Este ex-soldado poderia optar por salvar as vidas de outras cinco crianças. Não só isso, ele também poderia salvar as vidas de outras cinco crianças mais. Se este homem verdadeiramente arrependido pudesse fazer isso por algum tempo, o seu karma, a ação destruidora do passado, seria neutralizado.

 

Thay nos diz que após poucos minutos de aconselhamento, o soldado ferido se libertou de seu estado de espírito negativo. Ele imediatamente aspirava ajudar às crianças do mundo que morrem. Thay diz que o arrependido ex-soldado, recém-revigorado, passou a salvar ativamente a vida de inúmeras crianças no mundo que de outra forma certamente teriam morrido. O ato elevado do ex-soldado no presente transformou seu ato destrutivo do passado, catapultou-o para fora da culpa, tristeza e arrependimento e criou o seu futuro imensamente gratificante e pacífico.

 

Em seu livro, "Buddha Mind, Buddha Body", Thich Nhat Hanh, escreve: "Tudo é impermanente, sua culpa, sua raiva, seu medo As coisas podem se transformar muito rapidamente, se você conhece a prática." Sua Santidade o Dalai Lama. em seu livro  "Path to Bliss", escreve que "algumas pessoas não compreendem o conceito de karma. Elas distorcem a doutrina da lei da causalidade do Buda para dizer que tudo está pré-determinado, que não há nada que o indivíduo possa fazer. Este é um equívoco total.  Karma ou ação é um termo de força ativa, o que indica que os eventos futuros estão nas suas próprias mãos. Como a ação é um fenômeno que é cometido por uma pessoa, um ser vivo, está nas suas próprias mãos se quer ou não se envolver na ação." Mesmo se nós fizemos o mais horrível dos erros humanos, ainda há uma saída.

 

Os ensinamentos de Buda nos ajudam a compreender que temos a capacidade de neutralizar nosso karma negativo e elevar nossas ações no presente. Cada dia temos a oportunidade de salvar e proteger as vidas de muitos seres no mundo. Agir baseado neste poder traz imensa alegria.

 

-Mary Patterson (do livro “The monks and me” – relatando a experiência dela em um retiro de 40 dias em Plum Village)

(Traduzido por Leonardo Dobbin)

 

Caso queira obter esse texto em formato Word clique aqui