Sangha Virtual

 Estudos Budistas

Tradição do Ven. Thich Nhat Hanh

 

Perguntas e Respostas: Alimentação, Pessoas Difíceis, Discriminação

 

Pergunta: Porque devemos nos alimentar em silêncio durante o retiro?

 

Thay: Queridos amigos, vocês têm comido e falado por muitos, muitos anos. Não deveríamos acreditar que falar é a única maneira de se comunicar. Falar pode ser um obstáculo para a comunicação. Os produtores de TV às vezes dizem “juntamos as pessoas” - querendo dizer que levam informação de um lugar a outro, nos mostrando coisas que não tínhamos visto. O objetivo da televisão e do rádio é falar, mas isso não é necessariamente comunicação.

 

Uma repórter da revista Elle em Paris veio a Plum Village. Depois de entrevistar as monjas e os praticantes leigos, ela queria me entrevistar. Ela me pediu uma descrição completa de como começar a prática. Eu disse, “Jovens casais deveriam desligar a televisão, e, em vez de olharem para a tela, olharem um para o outro.” Há um comentário de fundo. Um escritor francês famoso Antoine Saint Exupéry, disse que amar um ao outro significa não olhar um para o outro, mas olhar na mesma direção. Ele pode estar certo, mas não se você estiver olhando na direção da televisão.

 

Eu aconselho o oposto: Desligue a televisão e olhem um para o outro. Então você pode perguntar: “Querida, somos um casal feliz?” Esta é a questão verdadeira. Então pergunte, “Se não somos, porque isso acontece?” Comece olhando para sua situação real. “Temos empregos, uma casa, televisão, tudo, e mesmo assim não somos felizes. Não nos sentimos confortáveis olhando um para o outro, portanto olhamos a televisão.”

 

Este é o primeiro exercício de meditação: desligue a televisão, olhem um para o outro e façam a pergunta verdadeira. Se o casal gastar meia hora discutindo porque não são felizes, verão a causa de sua infelicidade e serão capazes de trabalhar juntos em direção à felicidade verdadeira.

 

Quando você divide uma refeição em plena consciência, o objeto de nossa plena consciência é a comida. Comunicamos com o cosmos e reconhecemos a comida como um presente do cosmos. Se formos cuidadosos, podemos nos comunicar com o brilho do sol, com as nuvens, com a Terra, com tudo.

 

Eu como meu café da manhã no Upper Hamlet em Plum Village com um atendente, um monge noviço. Usualmente como um pedaço de pão e um pouco de iogurte salpicado com sal. Olhando para as colinas, vejo uma vaca comendo grama. Olhando para o iogurte, vejo que sou como um bezerro. Minha mãe é a vaca, e eu estou bebendo seu leite. Vejo a vaca comendo a grama, fazendo iogurte para mim. Olho para o iogurte e sei que a próxima palestra do Dharma que eu der será feita do iogurte que estou comendo. Este tipo de alimentação silenciosa é muito comunicativa e profunda, e eu não preciso dizer nada.

 

Enquanto estou comendo, o segundo objeto de nossa plena consciência é a pessoa sentada conosco. Estamos conscientes que ela está sentada lá? Cada pessoa tem uma esperança, medo, sofrimento e felicidade dentro dela. Esta pessoa está desejando transformar seu sofrimento e desenvolver sua capacidade de entendimento e de ser feliz para ajudar muitas outras pessoas. Sentar com essa pessoa, olhar para ela e saber que é uma co-praticante, um irmão ou irmã no Dharma, é muito comunicativo. Não é necessário falar para comunicar. Se você senta e irradia paz, estabilidade e alegria, está oferecendo algo muito precioso para a outra pessoa. Se a outra pessoa está sentada e produzindo sua presença verdadeira com solidez e paz, você pode receber muita energia dela. A verdadeira comunicação é possível em silêncio. O silêncio pode ser muito elegante. É um método de treinamento.

 

(palestra de Dharma realizada no dia 27 de maio de 1998 em Vermont)

 

Pergunta: Como praticar quando alguém continuamente rega suas sementes negativas?

 

Thay: Quando alguém rega suas sementes negativas é uma oportunidade para praticar. Alguns de nós pensam que seria mais fácil praticar se formos sozinhos para um retiro nas montanhas, mas se você fizer isso, não terá a oportunidade de ser desafiado. Viver com uma pessoa e as dificuldades apresentadas por essa pessoa é também uma oportunidade para a prática. Por favor, use seu tempo a sós, quando estiver sentando ou caminhando sozinho, para praticar e se preparar de forma que quando alguém vier e regar uma semente negativa, você será capaz de responder de forma mais positiva e bonita.

 

Se não nos prepararmos, então quando uma semente negativa for regada, sofreremos e reagiremos de uma maneira não sábia. Trazemos o sofrimento para dentro de nós e para dentro da outra pessoa também. Mas se formos plenamente conscientes e seguirmos nossa respiração enquanto fazemos nosso trabalho, estaremos praticando e nos preparando de forma que nossa plena consciência fique mais forte. Estamos trabalhando numa estratégia, de forma que quando uma semente negativa for regada, iremos respirar, sorrir, manter a calma e olhar para a outra pessoa com um sorriso.

 

Se formos bem sucedidos uma vez, teremos uma tremenda confiança no Dharma e na nossa prática, e teremos certeza que faremos ainda melhor na próxima vez. Daremos também uma boa impressão para a pessoa que rega as sementes negativas em nós. Se fizermos bem, então talvez em um ou dois meses, ela nos perguntará admirada, “Como você pode fazer isso?” Então será hora de compartilharmos nossa prática.

 

Há a questão de como continuar a prática se a outra pessoa – parceiro ou a família – não a aceita. Minha resposta é sempre essa: pratique naturalmente. Não seja capturado pelas formas na prática. Não mostre que está praticando. É possível. Por exemplo, quando você praticar meditação caminhando, pode praticar de forma natural de forma que ninguém saiba que você está praticando meditação caminhando, e mesmo assim você pode cultivar sua paz, plena consciência e alegria. Podemos chamar isso da prática da não prática.

 

E não seja muito ávido em compartilhar sua prática ou impor sua prática com a outra pessoa. Não fale sobre isso também. Apenas pratique de forma que você seja mais capaz de ouvir, sorrir, agir e reagir de uma forma refrescante. Se você for bem sucedido uma vez em responder de forma bonita quando suas sementes negativas forem regadas, então esse sucesso continuará e te ajudará e à outra pessoa ao mesmo tempo.

 

(palestra de Dharma realizada no dia 3 de junho de 1998 em Vermont)

 

Pergunta: Sou lésbica e me sinto discriminada pela sociedade. Como lutar para mudar essa situação?

 

Thay: Uma nuvem é uma nuvem. Olhando em profundidade na natureza da nuvem, vemos o cosmos. Uma flor é uma flor e se olharmos em profundidade para ela, veremos o cosmos. Tudo tem seu próprio lugar. A base, a fundação de tudo, é a mesma. Quando você olha para o oceano, vê diferentes tipos de ondas, formas e tamanhos diferentes, mas todas as ondas têm a água como a sua fundação, base e substância. Se você nasceu gay ou lésbica, sua base de ser é a mesma que a minha. Somos diferentes, mas dividimos a mesma base do ser.

 

O teólogo protestante Paul Tillich disse que Deus é a base do ser. Você deveria ser você mesma. Se Deus me criou como uma rosa, então devo me aceitar como uma rosa e minha relação com Deus será com um Deus rosa. Se você nasceu lésbica, então seja lésbica e sua relação com Deus será com um Deus lésbica. Olhando em profundidade, você verá que se tocar a base de seu ser, então encontrará paz.

 

Se você é vítima de discriminação, então seu modo de emancipar não é apenas de clamar sobre a injustiça, porque a injustiça não pode ser reparada apenas pelo reconhecimento das pessoas, mas pela sua capacidade de tocar a base de seu ser. Tenho uma experiência profunda nisso. Discriminação, intolerância e repressão brotam da falta de entendimento, falta de tolerância e falta de conhecimento. Se você for capaz de tocar a base de seu ser, poderá ser liberada de sofrimento que foi criado em você pela discriminação e repressão.

 

Você pode ser reprimida devido a sua cor ou raça porque a pessoa que te discrimina é ignorante. Ele não conhece sua própria base do ser e não percebe que todos dividimos a mesma base. É por isso que ele te discrimina. Pessoas que são ignorantes, que discriminam e levam outras ao sofrimento devido à sua ignorância não são felizes consigo próprias. Eles sofrem. Mesmo se você for vítima da discriminação, se puder tocar a base de seu ser, então poderá ver e expressar-se do modo que o sábio expressou Deus: “Perdoai, porque eles não sabem o que fazem”. Eles estão cometendo atrocidades e discriminando a partir da ignorância. Portanto perdoai-os.

 

Uma vez que você se aprofunda na base de seu ser, estará equipada com o tipo de entendimento que faz a compaixão e tolerância possíveis, e poderá perdoar mesmo as pessoas que te reprimem ou te discriminam. Se você é discriminada ou enganada, não acredite que o alívio ou justiça virá apenas através da sociedade. A verdadeira emancipação mora na sua capacidade de olhar em profundidade. Uma vez que você tocou as profundezas da base de seu ser, será emancipada e será mesmo capaz de abraçar e ajudar as pessoas ou grupos de pessoas que te enganaram e te discriminaram.

 

É claro, quando você sofre devido à discriminação, há sempre a necessidade de falar. Mas mesmo se gastar mil anos falando, seu sofrimento não será aliviado. Apenas pelo entendimento profundo, pela libertação da ignorância seu sofrimento será liberado.

 

Durante a Guerra do Vietnã, sofremos muito. Se olhar um pouco mais em profundidade na natureza da guerra, verá que o valor da vida de um civil vietnamita não era nada comparado com a vida de um soldado americano. Quando um piloto americano recebeu ordens de jogar bombas em uma área específica, não sabia o que iria acontecer depois. Ele não tinha que saber. As vidas das pessoas abaixo não significavam nada. Quando você sofrer assim, que tipo de grito pode aliviar seu sofrimento? Quando você vê a verdade, quando você desperta para a verdade, a compaixão brota como uma corrente de água.

 

Com essa compaixão você pode abraçar mesmo as pessoas que te enganaram, te discriminaram te perseguiram. Quando está motivado pelo desejo de ajudar aqueles que são vítimas da ignorância, apenas então estará livre de seu sofrimento e sentimento de violação. Esta é minha recomendação. Não espere que as coisas mudem ao seu redor. Não acredite que gritar por mil anos te trará alívio. Você tem que praticar para se liberar. Então estará equipada com o poder da compaixão e do entendimento, o único tipo de poder que pode ajudar a transformar um ambiente cheio de injustiça e discriminação. Você tem que se tornar uma pessoa assim, uma que incorpora tolerância, entendimento e compaixão. Você se transforma em um instrumento de mudança social e mudança na consciência coletiva da humanidade.

 

(palestra de Dharma realizada no dia 3 de junho de 1998 em Vermont)

(Textos traduzidos do livro “The Path of Emancipation” – Thich Nhat Hanh - por Leonardo Dobbin)

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