Sangha Virtual

 Estudos Budistas

Tradição do Ven. Thich Nhat Hanh

 

Ame seu inimigo

 

"Vocês ouviram o que foi dito: 'Ame seu próximo e odeie seu inimigo.' Eu, porém, lhes digo: amem seus inimigos, abençoem aqueles que os amaldiçoam, façam o bem àqueles que os odeiam e orem por aqueles que rancorosamente os usam e os perseguem. Assim vocês se tornarão filhos do Pai que está no céu: porque ele faz o sol nascer sobre os maus e os bons, e a chuva cair sobre os justos e os injustos."

 

Muitas pessoas rezam a Deus porque querem que Ele satisfaça algumas de suas necessidades. Se elas querem fazer um piquenique, pedem a Deus que lhes dê um dia claro e ensolarado. Ao mesmo tempo, os agricultores poderão estar rezando para pedir chuva. Se o tempo ficar bom, as pessoas que querem fazer o piquenique dirão: "Deus está do nosso lado; Ele atendeu às nossas preces." Mas, se chove, os fazendeiros dirão que Deus ouviu as preces deles. É dessa maneira que costumamos rezar.

 

Quando você reza apenas pelo seu piquenique, e não pelos fazendeiros que precisam de chuva, está fazendo o oposto do que Jesus ensinou. Jesus disse: "Amem seus inimigos, abençoem aqueles que os amaldiçoam." Se você examinar profundamente sua raiva, perceberá que o indivíduo que você chama de inimigo também está sofrendo. Tão logo você compreende esse fato, a capacidade de aceitar e ter compaixão por essa pessoa passa a estar presente. Jesus chamou essa atitude de "amar seu inimigo". Quando você é capaz de amar seu inimigo, ele deixa de ser seu inimigo. A idéia de "inimigo" desaparece e é substituída pela noção de alguém que está sofrendo e precisa de compaixão.

 

Fazer isso às vezes é mais fácil do que você poderia imaginar, mas é preciso praticar. Ler a Bíblia sem praticar não é muito proveitoso. No budismo, praticar os ensinamentos de Buda é a forma mais elevada de prece. O Buda disse: "Se alguém estiver numa margem e quiser ir para a outra, terá de usar um barco ou atravessar o rio a nado. Ele não pode simplesmente rezar: 'Oh, outra margem, por favor venha até aqui para que eu possa caminhar sobre você!'" Para um budista, rezar sem praticar não implica a verdadeira prece.

 

Na América Latina, os teólogos da libertação falam da preferência ou "opção" de Deus pelos pobres, pelos oprimidos e pelos marginalizados. Mas não acho que Deus queira que tomemos partido, mesmo que seja o dos pobres. Os ricos também sofrem, em muitos casos mais do que os pobres! Eles podem ter riquezas materiais, mas muitos são espiritualmente pobres e sofrem bastante.

 

Conheci pessoas ricas e famosas que acabaram cometendo suicídio. Estou certo de que aqueles que possuem um elevado grau de entendimento serão capazes de enxergar o sofrimento tanto dos pobres quanto dos ricos.

 

Deus abraça tanto os ricos quanto os pobres, e ele quer que eles se compreendam uns aos outros, que compartilhem uns com os outros seu sofrimento e sua felicidade e que trabalhem juntos pela paz e pela justiça social. Não precisamos tomar partido. Quando o fazemos, interpretamos erroneamente a vontade de Deus. Sei que algumas pessoas poderão usar estas palavras para prolongar a injustiça social, mas isso será abusar do que estou dizendo. Temos de descobrir as verdadeiras causas da injustiça social e, quando descobrirmos, não condenaremos certo tipo de pessoas. Perguntaremos: por que a situação dessas pessoas permaneceu assim? Todos temos o poder do amor e do entendimento. Estas são nossas melhores armas. Qualquer resposta dualista ou qualquer reação motivada pela raiva só tornará pior a situação.

 

Quando nos acostumamos a examinar as questões em profundidade, temos o insight do que devemos e não devemos fazer para que a situação mude. Tudo depende da nossa maneira de ver as coisas. A existência do sofrimento é a Primeira Nobre Verdade ensinada pelo Buda, e as causas do sofrimento são a segunda. Quando examinamos profundamente a Primeira Verdade, descobrimos a segunda. Depois de enxergarmos a Segunda Verdade, veremos a seguinte, que é o caminho da libertação. Tudo depende de compreendermos toda a situação.

 

Uma vez que o façamos, nosso estilo de vida se modificará de acordo com isso e nossas ações jamais ajudarão os opressores a fortalecer sua posição. Examinar profundamente uma questão não significa ser inativo. Nós nos tornamos muito ativos com nosso entendimento. Não violência não significa não-ação. Não-violência significa agir com amor e compaixão.

 

Antes de o monge vietnamita Thich Quang Duc queimar se vivo em 1963, ele meditou durante várias semanas e depois escreveu cartas muito carinhosas para seu governo, sua igreja e seus colegas monges e monjas explicando por que ele havia tomado aquela decisão. Quando somos motivados pelo amor e pela disposição de ajudar outras pessoas a alcançar o entendimento, até o auto-sacrifício pode ser um ato de compaixão. Quando Jesus se permitiu ser crucificado, Ele estava agindo da mesma maneira, motivado pelo desejo de despertar as pessoas, de restaurar o entendimento e a compaixão e de salvar as pessoas.

 

Quando estamos motivados pela raiva ou discriminação, mesmo que ajamos exatamente da mesma maneira, estaremos fazendo o oposto. Quando lemos as cartas de Thich Quang Duc, percebemos com extrema clareza que ele não estava motivado pelo desejo de se opor ou de destruir, e sim pelo desejo de se comunicar. Quando estamos presos numa guerra na qual as grandes potências possuem armas enormes e o controle total dos meios de comunicação, temos de fazer algo realmente extraordinário para nos fazermos ouvir.

 

 Sem termos acesso ao rádio, à televisão ou à imprensa, precisamos criar novas maneiras de ajudar o mundo a compreender a situação em que estamos. O auto-sacrifício pode ser uma dessas maneiras. Se o fizermos por amor, estaremos agindo de um modo bastante semelhante ao de Jesus na cruz e de Gandhi na Índia. Gandhi jejuou não com raiva, e sim com compaixão; não somente por seus compatriotas, mas também pelos ingleses. Esses grandes homens sabiam que é a verdade o que nos liberta, e fizeram todo o possível para tornar a verdade conhecida.

 

As práticas budista e cristã são as mesmas - tornar a verdade conhecida, a verdade sobre nós mesmos, sobre nossos irmãos, sobre nossa situação. Esta é a tarefa dos escritores, dos pregadores, dos meios de comunicação e também dos praticantes. Praticamos diariamente examinando profundamente a nós mesmos e a situação dos nossos irmãos.

 

Se praticamos sem ter consciência de que o mundo está sofrendo, de que crianças estão morrendo de fome, de que a injustiça social reina em toda parte, não estamos exercendo a prática da mente alerta. Estamos apenas tentando escapar. Mas a raiva não é suficiente. Jesus disse que devemos amar nosso inimigo.

 

"Pai, perdoai-os, porque eles não sabem o que fazem." Este ensinamento nos ajuda a saber como olhar para o indivíduo que julgamos ser a causa do nosso sofrimento. Se nos acostumarmos a examinar profundamente a situação e o que fez com que ele se tornasse o que é agora, e se nos visualizarmos nascendo na condição dele, talvez possamos perceber que poderíamos nos ter tornado exatamente como ele.

 

Quando fazemos isso, a compaixão surge naturalmente em nós, e compreendemos que a outra pessoa deve ser ajudada, e não punida. Nesse momento, nossa raiva se transforma na energia da compaixão. De repente, aquele a quem vínhamos chamando de inimigo torna-se nosso irmão. Este é o verdadeiro ensinamento de Jesus. Examinar profundamente uma questão é uma das maneiras mais eficazes de transformar nossa raiva, nossos preconceitos e nossa discriminação. Praticamos não apenas como indivíduos, mas também como grupo.

 

No budismo, falamos da salvação através do entendimento. Percebemos que é a falta de compreensão que gera o sofrimento. O entendimento é o poder capaz de nos libertar. É a chave que pode abrir a porta da prisão do sofrimento. Se não praticarmos o entendimento, não estaremos aproveitando o mais poderoso instrumento para libertar a nós mesmos e outros seres humanos do sofrimento.

 

O verdadeiro amor só é possível com o verdadeiro entendimento. A meditação budista - parar, acalmar-se e examinar profundamente - visa nos ajudar a compreender melhor as coisas. Em cada um de nós existe uma semente do entendimento. Essa semente é Deus. Ela também é o Buda. Se você duvidar da existência dessa semente, estará duvidando de Deus e de Buda.

 

Quando Gandhi disse que o amor é a força libertadora, ele quis dizer que temos de amar nosso inimigo. Mesmo que nosso inimigo seja cruel, mesmo que esteja nos oprimindo, semeando o terror e a injustiça, temos de amá-lo. Esta é a mensagem de Jesus. Mas como podemos amar nosso inimigo? Existe apenas uma maneira compreendê-lo. Temos de entender por que ele é como é, como veio a ser assim, por que não vê as coisas do modo como nós vemos. Compreender uma pessoa nos confere o poder de amá-la e aceitá-la. E, no momento em que nós a amamos e aceitamos, ela deixa de ser nossa inimiga. É impossível "amar nosso inimigo" porque, no momento em que passamos a amá-lo, ele deixa de ser nosso inimigo.

 

Para amá-lo, precisamos praticar o exame profundo a fim de compreendê-lo. Se o fizermos, nós o aceitaremos, amaremos e também aceitaremos e amaremos a nós mesmos. Na qualidade de budistas e cristãos, não podemos pôr em dúvida que o entendimento é o componente mais importante da transformação. Se conversamos um com o outro, se estabelecemos um diálogo, é porque acreditamos que existe uma possibilidade de compreender melhor a outra pessoa. Quando entendemos outra pessoa, nós nos compreendemos melhor. E, quando nos compreendemos melhor, passamos a entender também melhor a outra pessoa.

 

"Perdoai as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tenha ofendido." Todo o mundo comete erros. Se formos observadores, perceberemos que algumas das nossas ações no passado fizeram outras pessoas sofrer, e algumas ações de outras pessoas nos fizeram sofrer. Queremos ser magnânimos. Queremos recomeçar. "Você, meu irmão ou irmã, foi injusto comigo no passado. Compreendo agora que isso aconteceu porque você estava sofrendo e não viu claramente o que estava acontecendo. Não sinto mais raiva de você."

 

Você não pode se obrigar a perdoar. Somente quando entender o que aconteceu é que poderá sentir compaixão pela outra pessoa e perdoá-la. Esse tipo de perdão é fruto da consciência. Quando somos atentos, conseguimos perceber as inúmeras causas que levaram outra pessoa a nos fazer sofrer, e, quando enxergamos isso, o perdão e a libertação surgem naturalmente. É sempre proveitoso pôr em prática os ensinamentos de Jesus e do Buda.

 

(Do livro “Vivendo Buda, vivendo Cristo” – Thich Nhat Hanh)

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