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 Estudos Budistas

Tradição do Ven. Thich Nhat Hanh

 

As três raízes (parte 2)

 

Um conceito central na psicologia budista são as três raízes: ganância; ódio ou má vontade; e ignorância ou, como é às vezes chamada, ilusão. Estas três raízes são energias que sutilmente (ou menos sutilmente) permeiam nosso ser interior: nossas percepções, nossas motivações e as formas que podemos interagir com o mundo que nos rodeia. Uma maneira simples de entender esse conceito é visualizar uma tigela de água clara em que largamos uma gota ou duas de corante alimentar.

 

A coloração permeia todas as moléculas da água e a água torna-se da cor do corante alimentar: torna-se vermelha; azul; verde. As energias das três raízes colorem nossas percepções e a consciência da mesma maneira. Podemos ver tudo através das "lentes" das três raízes.

 

Estas três raízes expressam-se de forma diferente em cada um de nós. Para alguns de nós uma ou outra das raízes vai ser mais profunda ou mais forte que as outras. Cada um de nós tem nossa própria constituição e desenvolver uma familiaridade com as três raízes pode ser um caminho muito útil para percorrer para reconhecermos as motivações sutis que permeiam nossos pensamentos, nossas ações e nossas palavras.

 

(N.T. A primeira raiz foi abordada em texto anterior)

 

2. Má vontade

 

A segunda raiz que existe muito profundamente em nossa consciência é a raiz de má vontade, que é às vezes chamada de aversão ou ódio. Em seu nível mais fundamental, a má vontade representa um desligar ou um fechamento em relação a outras pessoas, em relação a experiências e, para a maioria de nós, em relação a nós mesmos.

 

Atenção plena

 

A prática que o Buda nos ofereceu para trabalhar e explorar nossa raiz de má vontade é a prática da atenção plena aplicada através dos Cinco Treinamentos de Atenção Plena. Nós os vemos como presentes, que oferecemos a nós mesmos e para aqueles que nos rodeiam. Na verdade, há um texto no Anguttara Nikaya no Cânone Pali que se refere aos Cinco Treinamentos de Plena Atenção como os "cinco presentes antigos honrados pelos sábios."

 

Como aproximar nossa própria prática dos Treinamentos da Atenção Plena? Nos aproximamos deles como presentes, como ofertas de autocuidado e cuidados com os outros, como maneiras de abrir nossos corações e nos ajudar a reconhecer os comportamentos e atitudes que podem ser prejudiciais a nós mesmos e aos outros? Ou podemos abordá-los com um espírito sutil de má vontade no sentido de que são regras pelas quais nos julgamos, mandamentos que nós nunca poderemos cumprir? Esta é uma reflexão que podemos usar na nossa prática diária: considerar nossa relação com os Treinamentos da Atenção Plena.

 

Pode ser que, ao contemplarmos a nossa relação com os Treinamentos da Atenção Plena que tomamos, descobriremos que temos diferentes relações com cada um deles. Talvez nos relacionemos com alguns dos Treinamentos da Atenção Plena muito abertamente como presentes e ofertas de coração, e ainda podemos ainda relacionar com outros em termos de mandamentos.

 

Os Treinamentos da Atenção Plena são oferecidos para reconhecermos esses lugares e essas situações em que nos fecharmos, em que nos comportamos de uma maneira que nos prejudica, bem como aos outros. Eles são espelhos para reconhecermos a multiplicidade de formas que escolhemos não nos importar com nós mesmos e com os outros, bem como as vezes que fazemos.

 

Quando as pessoas ouvem o termo que usamos na tradição budista para os preceitos monásticos, muitas vezes ficam surpreendidos. Chamamos os preceitos monásticos os votos Pratimoksha (sânscrito) ou Patimokkha (Pali). Pratimoksha significa "liberdade em todo lugar." Se você é um estudante da filosofia védica ou hinduísmo, sabe que moksha significa libertação, liberdade, liberdade completa. E prati significa em todos os lugares: liberdade aonde quer que estivermos. Isto pode parecer meio paradoxal se abordarmos os Treinamentos da Atenção Plena pelo ângulo das regras.

 

Se formos capazes de nos aproximarmos dos Treinamentos da Atenção Plena como meios hábeis que nos ajudam a abrir o nosso coração, que nos ajudam a ser capaz de cuidar do que está surgindo em nossa mente, do que está surgindo em nosso corpo, do que se coloca neste momento, então eles são ótimos presentes de amor. Os Treinamentos da Atenção Plena são muitas vezes chamados de uma expressão do despertar em si, porque são a manifestação concreta do corpo de Buda, o buddhakaya.

 

3. A ilusão

 

A terceira raiz que existe em nossa mente, em maior ou menor medida, é a raiz da ilusão. Ilusão em psicologia budista significa não ver as coisas como elas realmente são, ser pego pela aparência e não se aprofundar mais do que isso: você é você, eu sou eu, felicidade é felicidade, a tristeza é a tristeza. Este é o tipo de atitude que a ilusão dá origem. A ilusão que mais nos faz sofrer é a ilusão da separação.

 

Meditação

 

O Buda ofereceu a prática do bhavana, de meditação, de cultivar a nossa mente para desenvolver uma visão, para ser capaz de ver mais claramente o que está bem diante de nós, ou o que está surgindo dentro de nós, como uma prática para trabalhar com nossa raiz da ilusão.

 

Quando nós pensamos em um aspirante a artista, somos muito compassivos com os seus esforços quando estão apenas começando. Nós sabemos que eles precisam se familiarizar com os meios de comunicação que escolhem usar. Eles precisam entender qual pincel usar para o tipo de linha que estão pintando na tela. Eles precisam entender como as tintas aderem à tela, quanto tempo levam para secar, que tipo de imagens e texturas são criadas com diferentes movimentos da mão. É preciso tempo e esforço para recriar a imagem que vemos com nossos olhos físicos, ou mesmo nossa mente, sobre a tela.

 

Quando eu estava no ensino médio fiz aula de arte por alguns anos. Em um momento fomos convidados a desenhar um cavalo. Fiz muito esforço para desenhar meu cavalo. Ainda me vejo inclinando o papel com minha língua de fora. Quando terminei, pensei, "isso é realmente ótimo! Olha a cauda que flui, olhe para a crina soprando na brisa; é quase vivo." Então o professor veio e olhou para todos os desenhos. Quando ele chegou perto de mim e olhou por cima do meu ombro, disse, "eu esperava ver o desenho de um cavalo! Por que desenhou um cão?"

 

Eu sou um pouco mais humilde sobre minhas habilidades atualmente, mas eu apreciei o processo, no entanto, ainda estou um pouco orgulhoso do meu desenho mesmo que não pareça a ninguém mais um cavalo.

 

Thay recorda-nos frequentemente de que precisamos praticar a meditação como um artista. Como artistas, podemos nos familiarizar com nossos meios de comunicação, podemos aprender a segurar o pincel e escolher qual tinta usar para a imagem e a emoção que nós queremos expressar. E nós usamos essas ferramentas, bem como a nossa própria experiência de vida pessoal para criar nossa pintura. E quando olhamos para os grandes artistas, eles estavam usando praticamente as mesmas ferramentas que nós, mas as pinturas, as imagens que saíram são muito diferentes. Eles usaram o mesmo material de maneiras muito diferentes, de acordo com suas próprias capacidades e tendências.

 

A vida de prática da meditação é a mesma coisa; a manifestação da nossa prática será exclusivamente nossa própria. Todos temos nossos pontos fortes e os nossos próprios desafios únicos para trabalhar. Como praticantes inteligentes, nosso convite é levar nossas experiências vividas — nossas experiências mais maravilhosas e sofrimentos mais escuros — e permitir a prática da atenção plena enraizar-se em nós e se manifestar através de nós para permear nossas vidas. O maior presente que nós podemos oferecer para nós mesmos e para nossa Sangha é o presente de ser quem realmente somos.

 

(Do livro “Nothing To It: Ten Ways to Be at Home with Yourself”)

Phap Hai é professor de Dharma e o monge sênior da tradição de Plum Village)

(Traduzido por Leonardo Dobbin)

 

 

 

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