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 Estudos Budistas

Tradição do Ven. Thich Nhat Hanh

 

Atenção plena nas sensações e na mente

             

A Atenção Plena Correta (samyak smriti) está sempre no âmago de todos os ensinamentos de Buda. Tradicionalmente, a Atenção Plena Correta é a sétima etapa do Caminho Óctuplo, mas aqui ela está colocada em terceiro lugar, para enfatizar sua grande importância. A palavra sânscrita que designa atenção plena, smriti, significa "lembrar-se". A atenção plena consiste em lembrar-se constantemente de voltar ao momento presente. No Discurso Os Quatro Estabelecimentos da Atenção Plena (Satipatthana Sutta), o Buda propõe quatro objetos para a prática da atenção plena: o corpo, as sensações, a mente e os objetos da mente. (...)

 

O segundo estabelecimento é a atenção plena às sensações nas sensações. Os autores do Abhidharma enumeraram cinqüenta e um tipos de formações mentais. As sensações (vedana) são apenas um deles, Dentro de nós existe um rio de sensações, no qual cada gota representa uma sensação diferente. Para observar nossas sensações, só precisamos nos sentar à margem do rio e identificar cada sensação enquanto ele passa por nós e desaparece. As sensações podem ser agradáveis, desagradáveis ou neutras.

 

Quando nos vem uma sensação agradável, temos tendência a nos agarrar a ela, e quando é desagradável, desejamos que vá embora. Mas é mais eficaz em ambos os casos retomar à respiração e simplesmente observar a sensação, identificando-a silenciosamente: "Ao inspirar, eu sei que existe uma sensação agradável (ou desagradável) dentro de mim. Ao expirar, eu sei que existe uma sensação agradável (ou desagradável) dentro de mim." Chamar uma sensação por seu verdadeiro nome, como "alegria", "felicidade", "raiva" ou "tristeza" nos ajuda a identificá-la e enxergá-la com mais clareza. Em uma fração de segundo podem surgir muitas sensações.

 

Se nossa respiração for leve e calma - resultado natural da respiração consciente -, a mente e corpo se tornarão calmos, leves e claros, juntamente com as sensações. Nossas sensações não são separadas de nós nem causadas por coisas externas. Nossas sensações são nós mesmos, por um breve instante n6s nos tornamos as sensações. Não precisamos nos sentir intoxicados ou aterrorizados por elas, nem precisamos rejeitá-las. A prática de não se agarrar nem rejeitar as sensações é uma parte muito importante da meditação. Se encararmos nossas sensações com carinho, respeito e não-violência, podemos transformá-las em um tipo de energia saudável que irá nos nutrir. Quando uma sensação surge, a Atenção Plena Correta a identifica, reconhece que está lá e observa se é agradável, desagradável ou neutra.

 

A Atenção Plena correta é como uma mãe. Quando o filho sorri, ela o ama, e quando o filho chora, ela também o ama. Tudo o que ocorre em nosso corpo ou mente precisa ser observado com equanimidade. Não devemos lutar contra, mas sim acolher a sensação e procurar conhecer melhor o que está ocorrendo. Assim, da próxima vez que essa sensação surgir, nós a acolheremos ainda com mais calma.

 

Devemos acolher todas as nossas sensações, inclusive as difíceis, como a raiva. A raiva é um fogo que queima dentro de nós, e precisamos nos acalmar. "Inspirando, eu acalmo minha raiva. Expirando, eu curo a minha raiva." Quando a mãe pega no colo o bebê que chora, a criança já se sente aliviada. Quando abraçamos a nossa raiva com a Atenção Plena Correta, imediatamente passamos a sofrer menos.

 

Todos temos emoções difíceis, mas se permitirmos que elas nos dominem, ficaremos exauridos. As emoções se tornam descontroladas quando não sabemos o que fazer com elas. Quando as sensações são mais fortes do que a atenção plena, nós sofremos. Mas se praticarmos a respiração consciente diariamente, a atenção plena se tornará um hábito. Não espere para começar a praticar .quando estiver dominado por uma sensação qualquer, porque talvez seja muito tarde.

 

O terceiro estabelecimento é a atenção plena da mente (chítta) na mente. Estar consciente da mente é ter consciência das formações mentais. "Formações" (samskara) é um termo técnico budista que descreve algo que é "formado", algo que é feito a partir de outra coisa. Uma flor é uma formação. Nossa raiva é uma formação mental. Algumas formações mentais estão presentes o tempo todo e são chamadas de "universais" (contato, atenção, sensação, percepção e volição). Outras só surgem em circunstâncias particulares (zelo, determinação, atenção plena, concentração e sabedoria). Outras ainda nos elevam, ajudando a transformar o sofrimento (formações mentais benéficas ou saudáveis), e existem também as pesadas, que nos aprisionam ao sofrimento (formações mentais não-sadias ou prejudiciais).

 

Existem formações mentais que por vezes são saudáveis e outras não-sadias, tais como o sono, arrependimento, os pensamentos iniciais, e os pensamentos de desenvolvimento. Quando nosso

corpo e mente precisam de repouso. dormir é saudável. Mas se dormimos o tempo todo, pode ser não-sadia. Se magoamos alguém e nos arrependemos, isso é benéfico. Mas se o arrependimento conduzir a um complexo de culpa que vai tingir todos os nossos futuros atos, então o arrependimento é prejudicial. Quando nosso pensar nos ajuda a enxergar com clareza, ele é benéfico. Mas se a mente está dispersa em todas as direções, esse pensamento não nos ajuda em nada.

 

Existem muitos aspectos belos em nossa consciência, como fé, humildade, auto-respeito, ausência de desejo, raiva e ignorância, diligência, carinho com as pessoas, o sentir-se bem, equanimidade e não-violência. Por outro lado, as formações mentais doentias se assemelham a um novelo emaranhado. Tentamos desembaraçar a linha, e acabamos nos enrolando de tal forma que não conseguimos mais nos mover. Estas formações mentais às vezes são chamadas de aflições (kleshas), porque trazem dor para si e para os outros. Às vezes são chamadas de obscurecimentos, porque nos confundem e nos fazem perder o caminho. São também chamadas de impedimentos ou contratempos (ashrava), porque se assemelham a vasos rachados.

 

As formações mentais doentias básicas são a ganância, o ódio, a ignorância, o orgulho, a dúvida e as opiniões. As formações mentais doentias secundárias, que se originam das básicas, são raiva, malícia, hipocrisia, malevolência, inveja, egoísmo, fraude, astúcia, excitação doentia, desejo de prejudicar, falta de modéstia, arrogância, preguiça, agitação, falta de fé, indolência, indiferença, negligência, esquecimento e falta de atenção. De acordo com a Escola Vijnanavada de Budismo, existem cinquenta e um tipos de formações mentais, dos quais as sensações são apenas uma. Considerando-se que as sensações são, por si mesmas, o segundo estabelecimento da atenção plena, os outros cinqüenta caem na categoria do terceiro estabelecimento da atenção plena.

 

Cada vez que surge uma formação mental, podemos praticar o reconhecimento. Quando estamos agitados, dizemos: "estou agitado", e isso é suficiente para que a atenção plena se instale. Até sermos capazes de reconhecer a agitação como agitação, ela irá nos empurrar para cá e para lá, sem que saibamos o que está acontecendo nem por quê. A prática da atenção plena da mente não significa não ficar agitado. Significa apenas que quando estamos agitados temos consciência disso, porque a agitação tem um amigo dentro de nós, que é a atenção plena.

 

Mesmo antes da agitação se manifestar em nossa consciência, ela já faz parte da nossa consciência armazenadora sob a forma de uma semente. Todas as formações mentais estão latentes, sob a forma de sementes, na nossa consciência armazenadora. Algo feito por alguém faz regar a semente da agitação, e a agitação se manifesta em nossa consciência mental. Por isso, cada formação mental que surgir precisa ser reconhecida. Caso ela seja uma formação saudável, a atenção plena a cultivará. Se não for saudável, a atenção plena encorajará o seu retorno para nossa consciência armazenadora, para que permaneça ali, adormecida.

 

Podemos achar que a agitação é nossa, mas se pensarmos bem veremos que ela é herdada de toda a sociedade, por gerações e gerações de ancestrais. A consciência individual é feita da consciência coletiva, e a consciência coletiva, das consciências individuais. As duas coisas não podem ser separadas. Contemplando a consciência individual, tocamos a coletiva. Nossas idéias sobre beleza, bondade e felicidade, por exemplo, são as idéias da sociedade. Todos os invernos, os designers de moda nos dizem o que estará na moda na próxima primavera, e nós vemos suas criações pela lente da consciência coletiva.

 

Quando compramos um vestido da última moda, é porque estamos enxergando com os olhos da consciência coletiva. Alguém que vive na selva amazônica jamais gastaria tanto dinheiro para comprar um simples vestido, que nem sequer será considerado bonito. Quando produzimos uma obra literária, ela é feita tanto com a consciência coletiva como com a individual.

Costumamos falar na consciência mental e na consciência armazenadora como duas coisas diferentes, mas a consciência armazenadora é apenas a consciência mental em um nível mais profundo. Se considerarmos nossas formações mentais, veremos que elas têm raízes na consciência armazenadora. A atenção plena consegue olhar para as profundezas da consciência. Cada vez que uma das cinqüenta e uma formações mentais emerge, nós reconhecemos sua presença. Olhamos para ela, observando sua natureza impermanente e interdependente.

 

Esta prática tem o poder de nos liberar do medo, da tristeza e dos fogos que ardem dentro de nós. Se nossa atenção plena for capaz de acolher com carinho a alegria, a tristeza, e todas as nossas formações mentais, acabaremos enxergando, mais cedo ou mais tarde, suas raízes profundas. Cada passo e cada respiração realizados conscientes nos ajudam a enxergar as raízes das formações mentais. A atenção plena verte sua luz sobre as formações e nos ajuda a transformá-las.

 

(Do livro “A Essência dos ensinamentos de Buda”– Thich Nhat Hanh)

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