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 Estudos Budistas

Tradição do Ven. Thich Nhat Hanh

 

A Compreensão Correta (parte 2)

 

A primeira prática do Nobre Caminho Óctuplo é a Compreensão Correta (samyag drishti). Compreensão Correta é, antes de mais nada, uma profunda compreensão das Quatro Nobres Verdades - o sofrimento, a sua geração, o fato de que ele pode ser transformado e o caminho de transformação. Buda afirmou que a Compreensão Correta consiste em ter fé e confiança no fato de que existem pessoas que foram capazes de transformar sua dor.  (...)

 

Nós temos uma idéia do que é felicidade. Acreditamos que apenas certas condições nos farão felizes. Mas muitas vezes é exatamente esta idéia da felicidade que nos impede de sermos felizes. Precisamos conhecer nossas percepções para podermos nos libertar delas. Neste caso, o que no passado foi uma percepção, torna-se um insight, uma realização do caminho. Isto não é nem percepção nem não-percepção, mas a visão clara, que vê as coisas como são.

 

Nossa felicidade, bem como a felicidade daqueles que nos cercam, depende do nosso grau de Compreensão Correta. Entrar em contato com a realidade de forma profunda, ou saber o que ocorre dentro ou fora de nós, é a maneira para nos libertarmos do sofrimento causado pelas percepções errôneas. A Compreensão Correta não é uma ideologia, um sistema ou um caminho. É a compreensão da realidade da vida, uma compreensão viva que nos enche de paz, amor e entendimento.

 

Às vezes observamos nossos filhos fazendo coisas que sabemos que vão lhes trazer sofrimento no futuro, mas quando tentamos dizer isso a eles, não nos ouvem. Tudo o que podemos fazer é estimular neles as sementes da Compreensão Correta, e mais tarde, nos momentos mais difíceis, tentar oferecer algum beneficio ou orientação. Não é possível explicar uma laranja para alguém que nunca provou uma. Podemos descrevê-la muito bem, mas não somos capazes de dar aos outros a experiência direta. A pessoa tem que experimentar por si mesma.

 

Quando a experiência existe, se dissermos uma única palavra, ela atinge a pessoa. A Compreensão Correta não pode ser descrita, só podemos apontar a direção. Ela também não pode ser transmitida por um mestre. Um mestre pode nos ajudar a identificar as sementes da Compreensão Correta que já possuímos em nosso jardim, e também pode nos ajudar a ter confiança para praticar, inserindo esta semente no solo de nossa vida cotidiana. Mas o jardineiro somos nós. Temos que aprender a regar as boas sementes para que desabrochem em flores de Compreensão Correta. A forma de regar as boas sementes é viver com atenção plena - respirar consciente, caminhar consciente e viver cada momento de nossa vida em plena atenção.

 

Em uma demonstração a favor da paz, ocorrida em Filadélfia em 1966, um repórter me perguntou: "Você é do Vietnã do Sul ou do Norte?" Se eu dissesse que era do Norte, ele acharia que eu era a favor dos comunistas, e se respondesse que era do Sul ele concluiria que eu era pró-americano. Por isso, respondi: "Sou do centro." Queria ajudá-lo a abandonar suas idéias preconcebidas e enxergar a realidade à sua frente. Essa é uma linguagem zen. Um monge zen viu um ganso levantar vôo, e quis compartilhar sua alegria com o irmão mais velho que caminhava a seu lado. Mas no mesmo instante o outro monge havia se curvado para retirar uma pedra da sandália. Quando olhou para cima, o ganso já havia voado. Perguntou: "O que você queria me mostrar?", mas o monge mais novo só pôde permanecer em silêncio. O mestre Tai Xu disse: "Enquanto a árvore estiver atrás de você, você pode ver somente sua sombra." Se quiser atingir a realidade, é preciso se virar. O "ensinamento por imagens" utiliza palavras e idéias. O "ensinamento por substância" nos mostra a forma como vivemos.

 

Se você for a Plum Village por um dia, terá uma idéia de Plum Village, mas esta idéia não corresponderá exatamente a Plum Village. Você dirá: "Eu estive em Plum Village", mas na verdade você só esteve em sua idéia de Plum Village. A sua idéia pode até ser um pouco mais completa do que a de alguém que nunca esteve lá, mas continua sendo apenas uma idéia. Não é a verdadeira Plum Village. Seu conceito sobre a realidade não é a realidade em si. Quando ficamos presos a conceitos e percepções, perdemos contato com a realidade.

 

Praticar é ir além das idéias, para chegar à coisa em si. A não-ideia é o não-conceito. Enquanto houver uma idéia, não haverá realidade nem verdade. A expressão "não-ideia" na verdade significa a não existência de ideias ou de conceitos errôneos. Não significa ausência de atenção plena. Por causa da atenção plena, nós sabemos quando algo está errado e quando algo está certo.

 

Por exemplo, se estamos praticando a meditação sentados e vemos uma tigela de sopa de tomate em nossa mente, pensamos que isso é uma prática incorreta, porque naquele momento deveríamos estar prestando atenção à respiração. Mas se praticarmos a atenção plena, diremos: "Estou respirando e ao mesmo tempo estou pensando em sopa de tomate." Isto é a verdadeira Atenção Plena Correta. Estar certo ou estar errado não é um fenômeno objetivo, mas totalmente subjetivo.

 

Falando de forma relativa, existem pontos de vista corretos e incorretos. Mas se olharmos com mais profundidade, veremos que qualquer ponto de vista é incorreto. Nenhum ponto de vista pode realmente representar a verdade. Ele é o inverso, ou seja, a visão a partir de um único ponto, por isso é chamado de ponto de vista. Se nos posicionarmos de forma diferente, passaremos a ver as coisas de outra forma, e acharemos que nosso primeiro ponto de vista não estava certo. O budismo não é uma coleção de pontos de vista. É uma prática que nos ajuda a eliminar os pontos de vista incorretos. A qualidade de nossos pontos de vista sempre pode ser melhorada. Olhando a partir da realidade maior, a Visão Correta é a ausência de todos os pontos de vista.

 

 

(Do livro “A Essência dos ensinamentos de Buda” – Thich Nhat Hanh)

 

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