Sangha Virtual

 Estudos Budistas

Tradição do Ven. Thich Nhat Hanh

 

Lidando com a culpa e a raiva

 

Pergunta: Minha pergunta é sobre sentimentos de culpa. Se há alguém que regou tão cuidadosamente suas sementes de culpa que elas se tornaram uma árvore enorme, como você aconselharia esta pessoa que até mesmo se sente culpada sobre sentir culpa? 

 

Thich Nhat Hanh: Na psicologia budista, o reconhecimento que você fez algo errado e se sente arrependido por isto, pode ser uma energia positiva e boa. É uma das formações mentais identificadas como "indeterminadas", porque pode ser boa ou pode ser ruim. Mas se aquele sentimento se torna um tipo de prisão, um complexo de culpa, não lhe permitindo fazer qualquer coisa, se você for capturado por isto, então se torna algo negativo. Com a consciência que você fez algo injusto, que fazendo algo errado causou sofrimento dentro de você e para pessoas ao redor você, e se está incentivado pelo desejo de não fazer mais, não repetir mais, então você pode alcançar uma transformação. Você se compromete a não fazer isto, e não só não fazer mais isto, mas fazer o oposto. Então você pode adquirir a transformação e cura que deseja. 

 

Durante a guerra no Vietnã, um soldado americano ficou muito bravo porque muitos dos seus amigos tinham morrido em uma emboscada organizada por guerrilhas. Por causa daquela raiva ele tentou se vingar criando ele mesmo uma emboscada. Assim, foi para a aldeia onde a emboscada tinha acontecido e deixou uma bolsa de sanduíches à entrada da aldeia, se escondeu atrás das árvores e observou. Ele tinha posto veneno nos sanduíches. Eram sanduíches muito bons, mas ele os abriu e pôs veneno dentro. Ele realmente não sabia o que estava fazendo, sendo levado completamente pela raiva e pelo desejo de vingança. Um grupo de crianças passando, achou os sanduíches e os compartilharam entre si. Cinco minutos depois de comer, elas começaram a segurar os seus estômagos e chorar, e seus pais vieram. Era uma aldeia remota. Os pais tentaram achar um carro para transportá-las para o hospital mais perto que estava a várias dúzias de quilômetros. O soldado sabia perfeitamente bem que não havia nenhum modo para salvá-los. Cinco crianças morreram por causa da emboscada. 

 

Ele não pôde contar para ninguém aquela história. Por mais de dez anos ele não estava em paz consigo mesmo. Toda vez ele que estava sentando em um quarto com crianças, não podia agüentar e saia do quarto. Isto continuou até o dia em que ele veio a um retiro organizado por Plum Village no sul da Califórnia. Aquele retiro era especialmente organizado para veteranos do Vietnã. Os seus psicoterapeutas e as suas famílias também vieram para apoiar a prática. Eles se organizaram em grupos pequenos de cinco ou seis pessoas, e nós pedimos a muitos vietnamitas que vivem em comunidades vizinhas que viessem nos apoiar. Nós praticamos meditação sentada e escuta profunda, e lhes demos uma chance para falar. Havia pessoas que sentaram lá por meia hora, quarenta e cinco minutos e até mesmo mais de uma hora sem poder dizer qualquer coisa. Havia um veterano que se uniu à meditação andando, mas que não quis se misturar conosco porque tinha medo de uma emboscada. Assim, ele nos seguiu de longe, a aproximadamente dez metros, de forma que se algo acontecesse ele ainda poderia fugir. Havia outro veterano que não ousou dormir em um dormitório; ele teve que acampar nos bosques por perto, e montou armadilhas ao redor para se sentir seguro. 

 

O veterano que tinha matado cinco crianças pôde nos contar a história depois de fazer muitos esforços. Eu lhe disse: "Certo, você matou cinco crianças e se sente arrependido por isto. Mas eu quero que você saiba que crianças continuam morrendo diariamente e não só no Terceiro Mundo, mas também na América. Muitas crianças sofrem abusos; muitas crianças morrem por razões diferentes. Há crianças que morrem só porque elas precisam de uma dose de remédio que não podem dispor. Você sabia que se quisesse poderia salvar cinco ou dez crianças diariamente? Por que você fica apegado a esse complexo de culpa e destrói sua vida? Você ainda é jovem e pode fazer algo. É bom ver que você sabe que fez algo injusto e lamenta isto. Mas isso não é o suficiente, porque há coisas práticas que você pode fazer para ajudar as crianças. Se você quiser, nós lhe contaremos o que fazer para salvar cinco crianças hoje e cinco crianças amanhã. Se você praticar assim durante alguns meses, verá as cinco crianças que morreram no Vietnã sorrirem em você e você adquirirá transformação e cura.  

 

Assim, fazer um compromisso para não fazer mais isto e fazer um compromisso para fazer o oposto, trará muita energia para você. No mesmo momento em que você recebe os Cinco Treinamentos de Plena Consciência, se torna um bodhisattva, se torna um grande ser. Você pode ser preenchido de energia porque sai daqui como um bodhisattva, usando sua vida para trazer alívio a muitas pessoas que realmente precisam de você, em vez de se permitir ser apanhado naquela prisão de culpa. Em sua vida diária você pode se livrar da culpa e se tornar alguém cheio de energia, cheio de compaixão. 

 

Qualquer que seja a natureza de seu sofrimento, qualquer que sejam os erros que você cometeu, seja qual for a categoria a que eles pertençam, você pode praticar desse mesmo modo. Você faz um compromisso para não repetir mais e faz um compromisso para fazer o oposto, enquanto se transforma em um instrumento de amor e entendimento. No momento em que recebe os Cinco Treinamentos de Plena Consciência você pode se tornar outra pessoa. Transformação pode acontecer desde o começo. Muitas pessoas, no momento que recebem Treinamentos de Plena Consciência, sentem-se maravilhosos, como se fossem seres novos, por causa daquela energia que chamamos de voto, a determinação para viver nossas vidas de modo que se possa trazer alívio a muitas pessoas que sofrem.

 

Pergunta: Eu trabalho como psicoterapeuta com mulheres que foram abusadas sexualmente, e nós usamos uma prática que lhes permite gritar a sua raiva e tristeza, mas fazemos isto de modo que nós as abraçamos durante essa prática. A primeira vez que trabalhei lá e lhes pedi que respirassem profundamente, elas logo se apavoraram, porque deixaram de respirar para não sentir mais os seus corpos, não sentir a tristeza. Eu também penso que não é necessário fazer isso todo o tempo, porque a raiva cresce, mas não senti que a raiva estivesse sendo cultivada quando as permitimos fazer essa prática com alguém que esteja sentindo como elas. Eu penso que é necessário lhes pedir que tentem transformar esse sentimento, mas creio que este é o próximo passo. Eu sinto que antes deste passo deve ser permitido a elas expressar esse sentimento, porque elas não têm mais nenhum sentimento nos seus corpos. Se lhes permitimos mostrar os sentimentos bloqueados, elas se conectarão novamente com os seus corpos. Esta é a minha experiência, e eu quis compartilhar isto com você, porque eu também penso que é necessário transformar nossa raiva, mas penso que enquanto elas tiverem tanta tristeza nos seus corpos, não é tão fácil de abraçar esse sentimento. 

 

Thây: Eu sei que às vezes é muito difícil abraçar sua raiva e há os que não podem abraçá-la. Isso não significa que seja impossível. Se você não praticar a plena consciência que tipo de energia você tem para poder abraçar sua raiva? A maioria de seus clientes não pratica plena consciência na respiração, plena consciência ao caminhar, plena consciência ao comer. Que não possam abraçar facilmente a sua raiva é muito normal. Penso que o terapeuta deveria dar o exemplo: deveria mostrar que quando se tem a energia de plena consciência é possível abraçar muito bem sua raiva. É muito importante saber que em muitos de nós os blocos de dor são muito importantes - dor, desespero, ansiedade e medo - e não temos a coragem de voltar para nós mesmos porque temos medo de tocar esses blocos. Nossa prática diária é tentar fugir de nós mesmos: nós ligamos a televisão, nós apanhamos um romance para ler, nós saímos de carro, nós entramos em qualquer tipo de conversa sempre tentando se escapar de nós mesmos. 

 

Para uma pessoa como essa voltar e abraçar a raiva é impossível. Ela não tem nada com que voltar. Se ela voltar, será subjugada pela quantidade de dor, raiva e tristeza dentro dela. Para voltar você precisa ser equipado com algo, e esse algo é exatamente a energia de plena consciência recomendada pelo Buda. Se você tiver aquela energia, pode ir para sua casa interior e abraçar seu medo, raiva e desespero. Quando você estiver em uma comunidade de pratica vê que todo mundo está praticando e então você pode se permitir praticar do mesmo modo. Em um centro de prática, nós primeiramente aprendemos a tocar os elementos positivos para nos nutrirmos. 

 

Os elementos positivos também existem dentro de nós - dor e sofrimento são apenas um lado. O outro lado possui coisas positivas. Assim o terapeuta, ou o irmão de Dharma, pode o ajudar a identificar as coisas que não estão erradas apesar de você ter a idéia que tudo em você está errado. Mas isso não é verdade, há coisas em você que não estão erradas. Há coisas ao redor que não estão erradas. A primeira prática é confiar na Sangha, nos irmãos e irmãs, na comunidade para poder tocar os elementos positivos dentro e ao redor de você, para sua nutrição. Quando você ficar um pouco mais forte, poderá restabelecer o equilíbrio. Praticando entrar em contato com o aspecto positivo, você continuará cultivando sua energia de plena consciência e poderá ir para sua casa interior abraçando tudo que é doloroso dentro de você.

 

Às vezes você pode ganhar da energia de plena consciência de outras pessoas. Se a semente da plena consciência não for forte bastante para abraçar aquela dor dentro de você, então alguns irmãos e irmãs que meditam com você e te emprestam o seu poder de plena consciência, o ajudarão dizendo assim: "Coragem, meu irmão, coragem, minha irmã, nós estamos aqui e nós o apoiamos a voltar para sua dor e abraçá-la." Eu penso que isso é fazer uso da energia coletiva do grupo, assim sua energia de plena consciência será forte o suficiente para abraçar a energia dentro de você. 

 

Eu penso que o insight é o mesmo, mas a prática deve ser realista e inteligente. É possível para muitos de nós irmos nossa casa interior e abraçar nossa dor, porque praticamos plena consciência. A semente de plena consciência em nós ficou bem forte de forma que toda vez que começamos a praticar andar consciente e respirar consciente, temos bastante energia. E uma vez praticado assim, você não terá mais nenhum medo. Poderá acontecer uma vez ainda ao voltar a sua casa interior, mas se você puder abraçar sua dor ternamente enquanto inspira e expira, então da próxima vez talvez você não tenha nenhum medo. Você terá confiança em ir para sua casa interior, e poderá fazer isto a segunda e a terceira vez.

 

Mas no princípio, se você não sabe se é forte o bastante para fazer isto sozinho, então sempre peça para uma irmã ou um irmão que sejam bons na prática para sentar lá com você e o apoiar. É como seu filho - se você lhe pede que ele pratique inspiração e expiração, estar atento a subida e descida do estômago, pode ser que ele não consiga fazer isto só. Mas você pode segurar a mão dele, e dizer, "Querido, faça isto com a mamãe: vamos inspirar e se dê conta da subida do abdômen, e expirando, esteja atento a descida..." Você será uma tremenda fonte de apoio a ele, e ele poderá fazer isto, mesmo se ainda for uma criança. É por isso que o apoio de outra pessoa na comunidade é muito importante.

 

(Discussão de Dharma dada por Thich Nhat Hanh no dia 27 de julho  de 1998 em Plum Village, França)

 

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