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 Estudos Budistas

Tradição do Ven. Thich Nhat Hanh

 

A Fala Correta

 

Em nossa época, as técnicas de comunicação são muito sofisticadas. Enviamos notícias para o outro lado do planeta com facilidade e rapidez. Ao mesmo tempo, a comunicação entre as pessoas se torna cada vez mais difícil. Os pais não conseguem falar com seus filhos, os maridos com suas mulheres e os sócios com seus parceiros. A comunicação parece estar bloqueada. Estamos numa situação difícil, não apenas entre países, mas também entre pessoas. A prática do Quarto Treinamento da Atenção Plena é muito importante.

 

O enunciado clássico da Fala Correta é o seguinte:

 

(1)   Falar sempre a verdade. Quando uma coisa é azul nós dizemos que ela é azul, e não roxa.

 

(2)   Não falar coisas contraditórias deliberadamente. Não dizemos uma determinada coisa a uma pessoa e uma coisa diferente a outra pessoa. É claro que podemos descrever a verdade de várias formas, para que o ouvinte entenda o que estamos dizendo, mas é preciso ser sempre fiel à verdade.

 

 

(3)   Não falar com crueldade. Não gritamos, não caluniamos, não amaldiçoamos, não provocamos sofrimento nem geramos ódio. Mesmo aqueles que têm um bom coração e não querem ferir ninguém muitas vezes permitem que saiam palavras tóxicas de sua boca. Nós carregamos em nós as sementes do Estado de Buda juntamente com os grilhões das formações mentais. Quando dizemos algo venenoso, isso em geral se origina da força do hábito. As palavras são muito poderosas. Elas podem gerar um complexo em uma pessoa, tirar sua vontade de viver, ou mesmo conduzir alguém ao suicídio. É preciso não se esquecer disto.

 

(4)   Não exagerar nem retocar os fatos. Não devemos dramatizar desnecessariamente, querendo que as coisas pareçam melhores, piores ou mais urgentes do que realmente são. Se alguém está um tanto irritado, não diremos que está furioso. A prática da Fala Correta consiste em tentar mudar nossos hábitos, para que nossas palavras venham da semente de Buda que existe em nós, e não das sementes doentias ou indesejáveis.

 

 

A Fala Correta se baseia no Pensamento Correto. A fala é o nosso pensamento, expresso sob a forma de som. Quando falamos, nossos pensamentos deixam de ser particulares. Oferecemos aos outros fones de ouvido, permitindo que ouçam a fita de áudio que toca em nossa mente. É claro que existem coisas que pensamos e não dizemos, e uma parte de nós faz o papel de censor. Às vezes, quando um amigo ou terapeuta nos confronta com uma pergunta inesperada, acabamos sem querer dizendo a verdade que pretendíamos esconder.

 

Algumas vezes, os blocos de dor que existem incrustados dentro de nós se expressam na fala (ou nos atos), sem terem antes passado pelo pensamento. Ou seja, o sofrimento acumulado já não pode mais ser reprimido, especialmente quando não se pratica a Atenção Plena Correta. Quando expressamos dor, podemos ferir a nós mesmos ou aos outros, mas se não praticarmos a Atenção Plena Correta não saberemos o que está se acumulando dentro de nós. Por isso, terminamos por dizer ou escrever coisas que não queríamos, e não sabemos de onde essas palavras vieram.

 

Não queremos realmente ferir ninguém, mas acabamos dizendo coisas que ferem. Temos a intenção de só dizer palavras de reconciliação e perdão, e logo em seguida dizemos algo cruel. Para regar as sementes da paz que existem em nós, precisamos praticar a Atenção Plena Correta enquanto estamos caminhando, sentados, de pé etc. Com a Atenção Plena Correta conseguimos ver claramente nossos pensamentos e sentimentos, e identificar o que nos ajuda e o que nos machuca. Quando os pensamentos saem de nossa mente sob a forma de palavras, se a Atenção Plena Correta os acompanhar teremos consciência do que dizemos, e se isto é útil ou pernicioso.

 

O alicerce da Fala Correta é ouvir com atenção. Se não conseguimos escutar com consciência, não podemos praticar a Fala Correta. Não importa o que dissermos, estaremos apenas relatando nossas próprias idéias, sem realmente responder ao que o outro disse. No Sutra do Lótus somos aconselhados a olhar e ouvir com os olhos e ouvidos da compaixão. A escuta compassiva auxilia a cura. Quando alguém nos ouve desta forma, sentimos alívio imediato. Um bom terapeuta sempre pratica a escuta compassiva. Temos que aprender a também fazer a mesma coisa, para poder ajudar aqueles que amamos, resgatando a comunicação com eles.

 

Quando a comunicação é cortada, todos sofremos. Quando ninguém nos ouve ou entende, viramos uma bomba prestes a explodir. Restaurar a comunicação é uma tarefa urgente. Às vezes bastam dez minutos de escuta atenta para transformar uma pessoa e devolver o sorriso aos seus lábios. Bodhisattva Kwan Yin é aquela pessoa que ouve os lamentos do mundo. Ela tem a qualidade do verdadeiro ouvinte compassivo, que não julga nem reage. Quando ouvimos com todo o nosso ser, conseguimos desarmar diversas bombas-relógio. Se a outra pessoa acha que estamos criticando o que ela está dizendo, seu sofrimento não será aliviado. Quando o psicoterapeuta pratica o Ouvir Correto, seus pacientes têm a coragem de lhe dizer coisas que nunca disseram antes a ninguém. A escuta verdadeira nutre quem fala e quem ouve.

 

Nós já perdemos, em geral, a capacidade de ouvir e falar amorosamente em família. Talvez as pessoas já não consigam mais ouvir umas às outras, e por isso nos sentimos sós, mesmo estando em família. Por isso fazemos terapia, na esperança de que o terapeuta nos ouça. Mas muitos terapeutas também carregam consigo uma dor profunda, e às vezes não conseguem ouvir tão bem quanto gostariam. Assim, se você ama alguém, tente aprender a ser um bom ouvinte. Torne-se um terapeuta. Você será o melhor terapeuta do mundo para a pessoa que ama, se conseguir aprender a arte da escuta atenta e compassiva.

 

Além disso, é preciso aprender a falar com amor. Já perdemos a capacidade de dizer as coisas com calma, e nos irritamos com demasiada facilidade. A cada vez que abrimos a boca, nossa fala soa amarga ou azeda. Sabemos que isso é verdade, que perdemos a capacidade de falar com bondade. Este é o Quarto Treinamento da Atenção Plena, fundamental para a manutenção de relacionamentos pacíficos e amorosos. Se você não conseguir aprender isto, também não conseguirá atingir a felicidade, a harmonia e o amor. É por isso que a prática do Quarto Treinamento da Atenção Plena é tão importante.

 

Muitas famílias, casais e relacionamentos se rompem porque perderam a capacidade de ouvir uns aos outros com serenidade e compaixão. Não sabemos mais usar a fala calma e amorosa. O Quarto Treinamento da Atenção Plena é fundamental para restaurar a comunicação entre nós. É uma grande dádiva poder aplicar o Quarto Treinamento à arte de ouvir e de falar amorosamente. Por exemplo, um membro da família talvez esteja sofrendo muito, mas mesmo assim ninguém se senta calmamente para ouvi-lo. Se existir alguém na família capaz de ouvir com o coração, pelo menos durante uma hora, a pessoa que sofre terá a sensação de que sua dor foi aliviada. Se você sofre e ninguém o escuta, o sofrimento permanece lá. Mas, ao contrário, se alguém o ouve e compreende, você começa imediatamente a sentir o alívio de ser ouvido por alguém.(...)

 

Algumas vezes falamos intempestivamente e criamos pontos de bloqueio nas outras pessoas. Dizemos: "Mas eu só estava dizendo a verdade." Talvez o que foi dito seja a verdade, mas se esta forma de falar causa sofrimento desnecessário, então certamente não é a Fala Correta. A verdade deve ser apresentada de uma forma que o outro seja capaz de aceitar. Palavras que ferem ou destroem não representam a Fala Correta. Antes de falar, compreenda a pessoa com quem você está falando. Considere cada palavra cuidadosamente, antes de dizer qualquer coisa, para que sua fala seja correta na forma e conteúdo.

 

(Do livro “A Essência dos ensinamentos de Buda” – Thich Nhat Hanh)

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