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Tradição do Ven. Thich Nhat Hanh

 

O Medo Original

 

Muitos de nós encontramo-nos frequentemente pensando em coisas que atiçam sentimentos de medo e tristeza. Todos nós experimentamos algum sofrimento no nosso passado, e muitas vezes nos lembramos dele. Nós revisitamos o passado, revendo-o e assistindo os filmes do passado. Mas se nós revisitarmos estas memórias sem atenção plena consciência, cada vez que virmos essas imagens sofreremos novamente.

 

Suponha que você foi abusado quando criança. Você sofreu muito. Você era frágil e vulnerável. Provavelmente tinha medo o tempo todo. Você não sabia como se proteger. Talvez na sua mente você continue a ser abusado de novo e de novo, mesmo se você for um adulto agora. Você já não é aquela criança que era frágil e vulnerável, sem meios de defesa. Mesmo assim continua a experimentar o sofrimento da criança, porque você sempre revisita essas memórias, mesmo que sejam dolorosas. Há um filme, uma imagem armazenada em sua consciência. Toda vez que sua mente se volta para o passado e olha para aquela imagem ou assiste a esse filme, vai sofrer novamente. Plena atenção lembra-nos que é possível estar no aqui e agora. Lembra-nos que o momento presente está sempre disponível para nós. Não precisamos viver eventos que aconteceram há muito tempo.

 

Suponha que alguém bateu no seu rosto há vinte anos. Isto foi gravado como uma imagem no seu subconsciente. Seu subconsciente armazena muitos filmes e imagens do passado que sempre estão sendo projetados lá em baixo. E se você tem uma tendência a voltar e assisti-los de novo, então continuará a sofrer. Cada vez que você vir essa foto, é esbofeteado novamente e novamente e novamente.

 

Mas isso é apenas o passado. Você já não está no passado. Está no momento presente. Aquilo aconteceu, sim — no passado. Mas o passado já se foi. Agora as únicas coisas que ficaram são memórias e fotos. Se você continuar voltando ao passado para rever essas imagens, isso é plena consciência errônea. Mas se nos fixarmos no momento presente, podemos olhar para o passado de uma forma diferente e transformar o seu sofrimento.

 

Talvez quando você era uma criança, as pessoas às vezes levassem seu brinquedo para longe de você. Você aprendeu a chorar para tentar manipular a situação ou sorrir, a fim de agradar a pessoa que tomava conta de você, para fazê-la devolver o brinquedo. Quando era uma criança, você aprendeu a produzir um sorriso diplomático. Isso é uma forma de lidar com o problema da sobrevivência. Você aprende sem saber que está aprendendo. A sensação de que é frágil, vulnerável, incapaz de defender-se, a sensação de que sempre precisa de alguém para ficar com você, está sempre presente. Esse medo original — e sua outra face, desejo original — está sempre presente. A criança, com seu medo e seu desejo, está sempre viva em nós.

 

Alguns de nós têm depressão e continuam a sofrer mesmo que na situação atual, tudo pareça bem. Isto acontece porque temos uma tendência a viver no passado. Nos sentimos mais confortáveis, fazendo nossa casa no passado, mesmo que tenha muito sofrimento lá. Essa casa é no fundo de nosso subconsciente, onde os filmes do passado são sempre projetados. Toda noite voltamos, assistimos a esses filmes e sofremos. E o futuro que constantemente você se preocupa não é nada mais do que uma projeção do medo e do desejo do passado.

 

Como é tão fácil ser pego no passado, é útil ter um lembrete para que você fique no presente. Em Plum Village, usamos um sino. Quando ouvimos o sino, praticamos a respiração consciente. Inspirando e expirando, nós dizemos, "Eu ouvi o sino. Este som maravilhoso me remete à minha verdadeira casa." Minha verdadeira casa está no aqui e agora. O passado não é a minha verdadeira casa.

 

Você pode dizer à criança dentro de você, que o passado não é o nosso lar; nossa casa é aqui, onde podemos realmente viver nossa vida. Temos todo o alimento e cura que precisamos aqui no momento presente. Grande parte do medo, ansiedade e angústia que experimentamos está presente porque a criança interior não foi libertada. Está criança está com medo de sair para o momento presente e então sua plena atenção, sua respiração, podem ajudar esta criança a perceber que ela é segura e pode ser livre.

 

Suponha que você vá ao cinema. Do seu lugar na platéia você olha para a tela. Há uma história. Há pessoas na tela, interagindo amas com as outras. E lá embaixo na platéia, você chora. Você experimenta o acontecimento do que está na tela como real, e é por isso que você derrama lágrimas reais e emoções reais. O sofrimento é real; as lágrimas são reais. Mas quando você vai até a tela e a toca, não vê qualquer pessoa real. Não é nada, apenas uma luz piscante. Você não pode falar com as pessoas na tela. Você não pode convidá-las para tomar chá. Você não pode pará-las ou fazer-lhes uma pergunta, mas assim mesmo isto pode criar um sofrimento real, em seu corpo, bem como na sua mente. As nossas memórias nos causam muito sofrimento, tanto emocionalmente como fisicamente, mesmo que elas não estejam acontecendo no momento

 

Quando reconhercemos que temos um hábito de repetição de eventos antigos e de reagir a novos eventos, como se fossem os antigos, poderemos começar a notar quando surge essa energia de hábito. Podemos então suavemente lembrarmo-nos que temos outra escolha. Podemos olhar ao momento como ele é, um momento novo e deixar o passado para um momento quando pudermos olhar para ele com compaixão.

 

Nós podemos escolher uma hora e lugar, não em um momento agitado, mas em um momento tranquilo, para contar para a criança ferida e sofrida dentro de nós que ela não precisa mais sofrer. Podemos pegar a mão dela e a convidar para vir para o momento presente e testemunhar as maravilhas da vida que estão disponíveis aqui e agora: "Venha comigo, minha querida. Nós crescemos. Já não precisamos ter medo. Não estamos mais vulneráveis. Não estamos mais frágeis. Não precisamos ter medo de nada."

 

Você tem que ensinar à criança em você. Você tem que convidá-la para acompanhá-lo e viver a vida com você no momento presente. Claro, podemos conscientemente refletir e aprender do passado, mas quando fizermos isso ficamos firmes no momento presente. Se estivermos bem fundados no momento presente, poderemos olhar hábilmente para o passado e aprender sem ser sugado ou ser oprimido por ele.

 

Podemos também nos preparar para o futuro sem sermos consumidos por nossos planos. Muitas vezes nós também não planejamos nada, ou somos apanhados no planejamento obsessivo, porque temos medo do futuro e da incerteza. O momento presente é onde temos que operar. Quando você realmente está ancorado no momento presente, pode planejar o futuro de uma forma muito melhor.

 

Viver conscientemente no presente não exclui fazer planos. Significa apenas que você sabe que não vale a pena perder-se em preocupações e medos sobre o futuro. Se você está bem firme no momento presente, pode trazer o futuro para o presente para ter um olhar profundo sem perder-se na ansiedade e na incerteza. Se você está verdadeiramente presente e sabe como cuidar do momento presente da melhor maneira possível, está fazendo o seu melhor para o futuro já.

 

O mesmo é verdade sobre o passado. O ensino e a prática da atenção plena não proíbem olhar profundamente para o passado. Mas se nós nos permitirmos afogar em arrependimentos e tristezas sobre o passado, isso não é plena atenção correta. Se nós estamos bem estabelecidos no momento presente, podemos trazer o passado de volta para o momento presente e ter um olhar profundo. Você pode examinar muito bem o passado e o futuro enquanto você está estabelecido no momento presente. Na verdade, você pode aprender do passado e ter planos para o futuro da melhor maneira se estiver estabelecido no momento presente.

 

Se você tem um amigo que sofre, você tem que ajudá-lo. "Meu caro amigo, você está em terreno seguro. Agora está tudo bem. Por que continua a sofrer? Não volte ao passado. É apenas um fantasma; é irreal". E sempre que nós reconhecemos que estes são apenas filmes e fotos, não são a realidade, estamos livres. Esta é a prática da atenção plena.

 

(Do livro “Fear” – Thich Nhat Hanh – traduzido por Leonardo Dobbin)

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