Sangha Virtual

 Estudos Budistas

Tradição do Ven. Thich Nhat Hanh

 

Não Discriminação e Reconciliação

 

Era uma vez uma montanha onde muitos deuses viviam. Os deuses eram muito felizes. Eles pareciam não ter nada o que fazer. Eles passavam uma grande parte do tempo somente sentados ou caminhando. Havia um lindo riacho na montanha - a água era límpida e clara. Parecia que cada vez que alguém bebia daquela água se sentia leve e livre, sem desejo e sem raiva. Ao longo do riacho havia muitas cerejeiras que pareciam florir por todo o ano e os botões de cerejeira caíam na correnteza e se iam junto com a água. Alguns deles viajavam bastante longe, até a cidade que ficava no sopé da montanha.

 

Existia um homem nessa cidade que sofria tanto que queria morrer. Um dia, ele viu uma pétala de flor de cerejeira na correnteza e decidiu seguir seu caminho até a fonte. Ele disse a si mesmo que iria encontrar a fonte, mesmo que levasse anos. Depois de muitos anos de caminhada, ele chegou à montanha dos deuses e eles o convidaram a se aproximar, sentar-se junto da correnteza e tomar um pouco da água com as mãos. Depois de beber a água, o homem sentiu que não tinha mais desejo, nem mesmo desejo de cura e transformação. Ele se sentiu muito cansado, não queria mais nada - queria desistir de tudo.

 

Ele se deitou à margem do riacho e caiu em sono profundo. Durante o sono, a água continuou a trabalhar em seu corpo e em sua mente, transformando e purificando. Como ele se permitiu dormir profundamente, o trabalho de cura e transformação foi bastante fácil para ele. Ele não fez nada, apenas se deitou e permitiu que a água que havia bebido trabalhasse nele. Alguns dos deuses tomaram conta dele - pegaram dois seixinhos que pareciam olhos de gato, foram ate ele enquanto dormia e trocaram seus olhos pelos seixos. Agora ele tinha novos olhos.

 

O homem dormira por muito tempo. Depois de uma semana, ele acordou. Ficou em pé, viu o céu, as árvores como nunca tinha visto antes. Quando ele chegou, o céu e as árvores já estavam ali, mas ele parecia não ter visto do mesmo jeito, pois agora tinha novos olhos. De fato, tudo nele havia mudado. Tinha agora novos ossos, novo coração, novos intestinos - estava completamente transformado. Sentia-se agora como se fosse um dos deuses e não queria mais ir embora. Ele disse: "Eu não quero voltar pra casa, para aquele lugar, eu quero ficar aqui com vocês". Mas um dos deuses replicou: "Você tem que voltar pra casa e ajudar o seu povo". E o homem disse: "Se voltar pra casa, ficarei sozinho. Não conseguirei lidar com isso lá embaixo. É tão difícil! Eu não quero voltar nunca mais para aquele lugar". Um dos deuses, porém disse-lhe: "Olhe, quando você voltar pra casa, não verá mais as coisas do mesmo jeito que via no passado. Antes, você enxergava o céu e as árvores, mas agora, depois de uma semana, você já vê realmente o céu e as árvores. Não tenha medo de voltar pra casa. Com seus novos olhos, novos pulmões e novos ossos você verá as coisas de maneira diferente, não precisará sofrer. E sabe de uma coisa? Mesmo quando você voltar você continuará a nos ver. Nós não estamos somente aqui, estaremos lá embaixo com você".

 

O homem então entendeu. Disse adeus aos deuses, à montanha e ao riacho e começou a jornada de volta. Mas desta vez, não levou vários anos, como para subir. Levou apenas uma manhã. Os deuses estavam certos. Quando chegou em casa com seu novo ser, ele não viu a situação de maneira tão ruim e desesperadora como antes. Ele agora era capaz de olhar com compaixão e clareza, seu coração estava aberto e era capaz de redescobrir os seres humanos de uma forma nova. Ele sentiu a compaixão crescendo nele por que viu que muitos seres humanos estavam presos a idéias, ideologias, religião e cultura e que, por isso, sua verdadeira natureza humana não podia ser vista. Mas agora, depois que se tornou uma pessoa livre, pôde descobrir seres humanos mesmo dentro de verdadeiros cadáveres. Por isso, quando ele os olhava e os ouvia, não se sentia mais irritado ou frustrado. Com seu sorriso, podia ajudá-los a mudar sua situação. Ele descobriu que não estava sozinho. Todos os deuses com os quais se encontrara na montanha estavam bem ali para ajudá-lo e para lhe fazer companhia.

 

Essa história é feliz por que o homem foi capaz de passar sete dias na montanha permitindo a si mesmo ser objeto de transformação e cura através da água da compaixão. Ele não fez absolutamente nada durante o tempo em que ficou na montanha. Não praticou nada, praticou a não prática. Apenas permitiu a si mesmo ser abraçado pela montanha, pelo riacho, pelas árvores, para se renovar. Assim, ele conseguiu novos olhos, novos ouvidos, novos ossos e novo coração. Se ele tivesse ido à montanha somente para procurar idéias e respostas para levar pra casa, não teria sido capaz de retornar com compaixão e sem medo. Ele não foi à montanha em busca de teorias, ideologias, táticas ou estratégias. Ele foi lá para se renovar e deixou que essa renovação ocorresse. Quando voltou para casa, não levou ensinamentos, práticas ou respostas - apenas levou a si mesmo, totalmente renovado.

 

Vocês não precisam de respostas de outras pessoas sobre como mudar suas relações pessoais e com o resto do mundo. Se vocês mudarem seus olhos e corações, não precisarão de mais nada. Não precisam de nenhuma prática ou estratégias. Encontrem o riacho, bebam da sua água, deitem-se e permitam que a água faça o resto.

 

Às vezes é mais fácil ficar com raiva do que expressar seu próprio sofrimento. Os israelenses pensam que não são árabes, mas são muito semelhantes aos árabes. São seres humanos. Eles não querem morrer, mas viver em segurança. Eles querem fraternidade, irmandade e paz. Estamos separados por nomes como "Budista","Cristão","Judeu", "Muçulmano". Quando ouvimos uma dessas palavras, vemos uma imagem e nos sentimos alienados, não nos sentimos conectados. Construímos muitas estruturas para estarmos separados uns dos outros e para fazermos sofrer uns aos outros. Por isso é importante descobrir o ser humano na outra pessoa, e ajudar a outra pessoa a descobrir o ser humano em nós. Como seres humanos, somos exatamente o mesmo. Se você tem muitas camadas de roupa sobre si mesmo, você evita que outras pessoas vejam você como um ser humano. Ser "Budista" pode ser uma desvantagem, por que se você carrega esse título pode ser um obstáculo e as pessoas podem não ser capazes ver o ser humano em você. Da mesma maneira se você carregar a marca "Muçulmano", pode fazer muitas pessoas se desviarem de você, pois elas estão tão agarradas a essas noções que não podem se reconhecer umas às outras como seres humanos. É uma pena. É por isso que o Mestre Lin Chi disse que você tem que queimar todos esses obstáculos, jogá-los fora e queimá-los. Esta é uma prática verdadeira - queimar tudo para que o ser humano seja revelado. Este é o trabalho da paz.

 

Em 1963, eu estava sentado com alguns dos meus estudantes no campus da Universidade de Columbia em Nova Iorque. A manhã estava linda, o sol estava brilhando e estávamos conversando entre nós sobre a prática budista de remover conceitos. De repente, alguém passou, parou, olhou para mim por alguns segundos e me perguntou: "Você é budista?". Olhei para ele e disse "Não". Disse uma mentira? Espero que meus estudantes tenham me entendido naquele momento. Se eu tivesse dito "Sim, sou budista", ele poderia ser apanhado pela idéia do que um budista deva ser, e isso não vai ajudá-lo. Assim, "Não" foi de mais ajuda que um "Sim". Esta é a linguagem do Zen. Se você diz ou faz alguma coisa é para ajudar a desfazer os nós nas mentes das pessoas e não amarrá-las. É por isso que a linguagem que usamos deve ter como objetivo a libertação.

 

Quando ouvimos os palestinos e todo o sofrimento pela qual passam, entendemos seu sofrimento por que sofremos também. Não queremos comparar nosso sofrimento com o deles, mas entendermos o sofrimento como uma realidade. Esta é a Primeira Nobre Verdade, "o sofrimento existe". É claro, queremos que o sofrimento acabe. Não queremos que eles sofram mais. E se alguém dissesse: "Estamos sofrendo. Fomos vítimas. Você ficará do nosso lado? Você estará comigo para se opor a todos aqueles que criaram esse sofrimento?". Então seria muito difícil de responder. Você está com eles, compreende profundamente seu sofrimento, mas se pedem pra você se juntar a eles na luta pela destruição daqueles que acreditam ser seus inimigos, você reluta, você sabe que eles tentaram esse método por vários anos e não conseguiram. Eles não estavam sozinhos nesta luta - tiveram apoiadores tanto no país quanto no estrangeiro, mas essa corrente de ação - tentar destruir os chamados inimigos - não deu em nada e, de fato, não diminuiu o sofrimento, apenas o aumentou.

 

Reluto em dizer que estou do seu lado, que eu apoio vocês de todo coração, que farei tudo o que vocês quiserem que eu faça. Não estou pronto pra escolher um lado assim. Eu perguntaria: "Sim, estou pronto pra ficar do seu lado, mas você está pronto pra ficar do meu? Sou um ser humano como você, você sabe qual o meu lado? É o de que o sofrimento deve parar. Concordo com você que algo tem que ser feito e deveria ter sido feito para parar o sofrimento. Mas eu não posso concordar com outras coisas da sua posição. Quero agir, quero ter compaixão, mas não quero agir baseado na raiva, na violência e na discriminação. Se você ficar do meu lado, estarei com você cem por cento".

 

Quando você apóia alguém, você traz consigo todo o seu ser nesse apoio. No seu ser está sua sabedoria e compaixão. Sem essa sabedoria e compaixão você não pode apoiar ninguém. Se eu ficar do seu lado, não vai significar que eu irei ajudar a construir uma cerca, destruir uma cidade ou levar uma bomba para explodir os passageiros. Apesar de estar com você no seu sofrimento e no seu desejo de acabar com o sofrimento, não posso estar com você nesse tipo de ação. Acredito que existem muitas maneiras de acabar com o sofrimento e ajudar os chamados inimigos a também acabar com o sofrimento deles. Para mim existe um caminho bastante claro. Se mantivermos os venenos do desespero, da raiva e da violência dentro de nós, continuaremos a sofrer, e qualquer ação que fizermos não beneficiará ninguém.

 

Por isso, ir à montanha, deitar-se e deixar que a água da compaixão transforme você e remova esses venenos é crucial. Não estou aqui na montanha para pedir aos deuses que se juntem a mim no combate aos meus inimigos. Estou aqui para permitir aos deuses que me ajudem a remover os venenos da violência, medo, desespero e raiva. Então eu sei que, quando eu voltar para casa como uma nova pessoa, poderei ajudar muitas outras pessoas, pois desta vez, estarei equipado com os elementos da compreensão, compaixão, serenidade e solidez.

 

Injustiça é sofrida pelos dois lados. Os palestinos têm sofrido muito. E quando os israelenses vêm e descrevem para nós o seu sofrimento, somos capazes de ver que também têm sofrido. Esse tipo de compreensão é crucial. Uma vez que a compreensão e a compaixão tenham nascido em nosso coração, os venenos da raiva, discriminação, ódio e desespero serão transformados. Por isso é que a única resposta é remover o veneno e deixar que o insight e a compaixão entrem. Então eles irão se descobrir uns aos outros como seres humanos e não ficarão desapontados com as aparências externas como "Budismo", "Islã", "Judaísmo", "Pró-americano", "Pró-árabe" etc. Este é o processo de libertação da nossa ignorância, idéias e noções e da nossa tendência a discriminar. Quando vejo você como um ser humano que sofre bastante, não terei coragem de atirar em você. Pedirei a você que venha trabalhar comigo para que tenhamos chance de vivermos juntos em paz. É uma pena - a Terra é tão bonita e existe ainda tanto espaço para todos - que continuemos a nos matar uns aos outros.

 

(Retirado do Capítulo V do livro de Thich Nhat Hanh - "Peace Begins Here: Palestinians and Israelis Listening to Each Other" - Tradução Samuel Cavalcante)

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