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 Estudos Budistas

Tradição do Ven. Thich Nhat Hanh

 

Primeiro Treinamento

 

Primeiro Treinamento:"Consciente do sofrimento causado pela destruição da vida, eu me comprometo a cultivar o insight do Interser e da compaixão, e a aprender maneiras de proteger a vida das pessoas, animais, plantas e minerais. Estou determinado a não matar, a não deixar que outros matem e a não apoiar nenhum ato de matança no mundo, seja na minha maneira de pensar ou no meu modo de vida. Ao ver que as ações que causam sofrimento surgem a partir da raiva, do medo, da avidez e da intolerância - que, por sua vez, baseiam-se no pensamento dualista e discriminativo - cultivarei a abertura, a não discriminação e o não apego a pontos de vista para transformar a violência, o fanatismo e o dogmatismo em mim mesmo e no mundo."

 

O Primeiro Treinamento da Plena Consciência nos lembra de praticar a proteção da vida e não matar. Esta é uma prática que se destina a nos lembrar das violências tanto pequenas como grandes. Tal como acontece com cada um dos treinamentos da consciência plena, é destinado a não ser absoluto, mas um caminho para andar. Não é possível evitar a morte por completo. Por exemplo, você pode dizer que você vai ser vegetariano para que esteja menos envolvido na morte de animais, mas quando você cozinha os legumes para comer muitos microorganismos morrem. Assim, até mesmo a sua dieta vegetariana não é totalmente vegetariana. Tudo bem. Você está trabalhando em direção a menos sofrimento. Não é que não haja sofrimento. Mas você escolheu o caminho para minimizar o sofrimento. Podemos reduzir o sofrimento um pouco a cada vez que agimos, a cada vez que comemos todos os dias.

 

Em um mundo em que as pessoas usam a violência em nome do idealismo, religião ou Deus, o Primeiro Treinamento nos ajuda a transformar o nosso desejo, raiva e ignorância. A Segunda Nobre Verdade nos lembra que nosso sofrimento vai continuar enquanto mantivermos visões erradas. Nosso desejo e raiva surgem da ignorância, assim, com a visão correta, já não somos capazes de justificar a violência e, ao praticarmos a não-violência, salvamos e protegemos a vida, o Primeiro Treinamento.

 

Quando praticamos o Primeiro Treinamento da Plena Consciência, fortalecemos nossos olhos de interser. O nosso olhar tem que ser amplo e aberto para que possamos ver sem sermos pegos em ideologias e dogmas. Podemos ver que quando matamos alguém nos matamos. Quando encontramos alguém que pensamos ser um inimigo, temos a tendência de pensar que precisamos  nos proteger e que ferir a outra pessoa vai nos ajudar a ficar seguros. Mas ferir a outra pessoa não nos manterá seguros. Podemos pensar que a única maneira de ficarmos seguros é atacando a outra pessoa. Mas ferir ou matar a pessoa que consideramos ser nosso inimigo só vai fazer mais inimigos.

 

Nós temos que entender a nossa própria raiva e sofrimento e ajudar a pessoa que consideramos ser nosso inimigo a aliviar seu próprio sofrimento. A violência não pode acabar com o sofrimento. Só compreensão e amor podem transformar o sofrimento.

 

Em 2007, voltei ao Vietnã depois de muitos anos de exílio. Organizamos uma série de cerimônias memoriais e as oferecemos para os sete milhões de vietnamitas que morreram na guerra com os Estados Unidos. Nessa cerimônia, fizemos este voto: "Diante de nossos antepassados espirituais e de sangue, juramos que a partir de hoje em diante, nunca devemos permitir que outra guerra ideológica aconteça." A guerra que aconteceu no Vietnã foi uma guerra ideológica. As ideologias comunistas e capitalistas não são ideologias vietnamitas, assim como as armas que usamos para matar uns aos outros em nome dessas ideologias também não eram vietnamitas.

 

Na primavera de 2013, visitei a Coréia do Sul. Dei uma palestra lá sobre a paz entre a Coreia do Sul e a Coreia do Norte, onde que eu propus que não seria suficiente limitar o desenvolvimento de um programa de armas nucleares. Temos que abordar a grande quantidade de medo que temos dentro de nós. Se não houvesse nenhum medo, raiva ou suspeita, as pessoas não iriam usar armas nucleares ou qualquer outro tipo de arma. Não é a ausência de armas nucleares por si só que garante que dois países possam se reconciliar e ter paz. É através da remoção de medo, raiva e suspeita que podemos fazer a verdadeira paz possível.

 

Quando você tenta fabricar armas nucleares, não é realmente porque queira destruir o outro lado, é porque você está com medo de que eles vão atacá-lo primeiro. Se você quiser oferecer ajuda em qualquer lugar do mundo, seja nos Estados Unidos,  Coreia do Sul e do Norte, Oriente Médio, ou em qualquer lugar, você pode ajudar a trabalhar na remoção do medo, raiva e desconfiança de ambos os lados.

 

Israelenses e palestinos, por exemplo, ambos têm o desejo de sobreviver como uma nação e um povo. Ambos estão com medo de que o outro lado vá destruí-los. Ambos têm suspeitas, porque no passado o que eles receberam do outro lado tem sido a violência. Então, para fazer a paz verdadeira possível, você tem que tentar remover o medo, raiva e desconfiança. Isso não é só para os políticos. Cada um de nós pode agir de tal maneira que podemos diminuir a enorme quantidade de medo, raiva e suspeita que existe?

 

Na primavera de 2013, em Newtown, em Connecticut, um jovem entrou em uma escola e começou a atirar em crianças e professores. Muitas pessoas foram mortas. Após o evento, alguns políticos tentaram, sem sucesso, aprovar leis que limitavam os tipos de armas que são vendidos e tentaram reforçar as leis que restringem compras de armas, bem como as normas de segurança que regem o seu uso. Embora tais leis possam ser úteis, ainda não abordam as questões subjacentes, que são o sofrimento das pessoas, violência, raiva e doença mental. Muitas pessoas compram armas porque têm medo e querem se proteger. Assim, a principal questão não são as armas comuns ou armas nucleares, é o medo.

 

Em um relacionamento, se a reconciliação parece ser difícil, normalmente não é porque as duas pessoas não estejam dispostas a se reconciliar, mas é porque a quantidade de raiva, medo e desconfiança em cada uma já é muito grande. Costumamos dizer que a culpa é da outra pessoa; queremos reconciliar, mas o outro não. Mas isso é raramente o caso. A outra pessoa pode querer reconciliar, mas ele ou ela ainda tem um monte de raiva, medo e desconfiança. Dizendo isso para a outra pessoa não vai ajudar. Se você quiser ajudar alguém a reduzir o seu medo, raiva e desconfiança, primeiro você tem que praticar para reduzir a quantidade de medo, raiva e desconfiança em você mesmo. Oração ou boa intenção não são suficientes para mudar uma situação de raiva ou violência.

 

O Primeiro Treinamento é um lembrete de que você tem que praticar, treinar-se para diminuir a violência através da compreensão. Você pode fazer isso através da prática de atenção plena. Praticar a atenção plena significa que em vez de reagir a qualquer estímulo que esteja em torno de nós ou nos provoca, voltamos à nossa respiração, acalmamos o nosso corpo, paramos o nosso pensamento e trazemos a mente para o corpo no momento presente.

 

Nós nos tornamos mais conscientes de nossas motivações, nossos pensamentos, nossas ações e suas conseqüências, bem como a forma como falamos com os outros. Entendemos melhor a nós mesmos. Vemos a nossa contribuição para a situação e vemos que podemos abrigar equívocos sobre a outra pessoa ou grupo. Com essa visão mais clara, podemos ver que os outros são seres humanos como nós, com os mesmos sentimentos, motivações e preocupações. A menos que tenhamos a prática de compreensão e compaixão, mesmo se tentarmos ajudar em uma situação em que há tensão, poderemos não ter sucesso.

 

Suponha que a Coreia do Sul envia a Coreia do Norte um grande carregamento de grãos e outros alimentos, dizendo que o Norte precisa de muita comida para os pobres sobreviverem. A Coréia do Sul pode ser motivada pela boa intenção de evitar a fome no Norte, mas o Norte pode ver isso como uma tentativa de desacreditá-los, como se o Sul estivesse dizendo que o Norte não seja capaz de alimentar a sua própria população.

 

Qualquer coisa que você faça ou diga pode ser distorcida e criar mais raiva, medo e desconfiança. Nossos líderes políticos não foram treinados na arte de ajudar a remover o medo, raiva e desconfiança. É por isso que nós temos que pedir ajuda para aqueles de nós que praticam a compaixão e a escuta profunda e que tiveram algum sucesso em transformar o medo, raiva e desconfiança em si mesmos. Podemos usar o Primeiro Treinamento como um lembrete para continuar nossa prática do Quarto Treinamento (escuta profunda e a fala amorosa), a fim de reduzir o medo, a raiva e a desconfiança. Se fizermos isso como uma grande comunidade, a nossa visão vai crescer e vai trazer mais paz ao mundo.

 

(Do livro “The mindfulness survival kit”– Thich Nhat Hanh)

(Traduzido por Leonardo Dobbin)

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