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 Estudos Budistas

Tradição do Ven. Thich Nhat Hanh

 

Nutrindo Paz (parte 2)

 

O Buda falou sobre o caminho da emancipação em termos de consumo. Em O Discurso na Carne do Filho o Buda ensinou que nós consumimos quatro tipos de nutrientes. Se diariamente nós estivermos atentos ao que nós estamos consumindo e entendermos sua natureza, poderemos transformar o sofrimento dentro de nós e ao nosso redor. Consumir com consciência é essencial para acabar com o terrorismo. 

 

A TERCEIRA NUTRIÇÃO: NOSSO DESEJO MAIS PROFUNDO

 

O terceiro tipo de comida é a volição, nosso desejo mais profundo. Nós temos que perguntar para nós mesmos, o que é meu desejo mais profundo nesta vida? Nosso desejo pode nos levar na direção da felicidade ou na direção do sofrimento. Desejo é um tipo de comida que nos nutre e nos dá energia. Se você tem um desejo saudável, como o desejo de proteger a vida, proteger o ambiente, ou viver uma vida simples com tempo para ter cuidado com você e seu amado, seu desejo trará felicidade. Se correr atrás de poder, riqueza, sexo e fama, pensando que eles trarão felicidade, você estará consumindo um tipo muito perigoso de comida que te trará muito sofrimento. Você pode ver que isto é verdade dando uma olhada ao seu redor. 

 

Em 1999, em um retiro para líderes empresariais, muitos compartilharam que aqueles com grande riqueza e poder também sofrem tremendamente. Um homem de negócios muito rico nos contou do seu sofrimento e solidão. Ele possui um negócio muito grande com mais de 300.000 trabalhadores, operando em toda parte do mundo, inclusive no Vietnã. Ele compartilhou que as pessoas muito ricas estão freqüentemente extremamente sós porque suspeitam dos outros. Eles pensam que todos os que se aproximam o fazem por causa do seu dinheiro e só querem tirar vantagem. Eles sentem que não têm nenhum amigo real. Filhos de pessoas ricas também sofrem profundamente; freqüentemente seus pais não têm nenhum tempo para eles porque estão preocupados em manter a sua riqueza. 

Vários anos atrás, oferecemos um retiro em San Diego, Califórnia, onde dois artistas famosos participaram. Um deles era Peter Yarrow, o cantor do Peter, Paul e Mary, e a outra era Julie Christie, atriz de cinema. Ambos nos falaram que a fama deles não os fez felizes. A felicidade vem de poder voltar ao seu coração e mente e realmente praticar. Odette Lara, a estrela de cinema brasileira, assistiu a um retiro na Califórnia nos anos 80, e posteriormente me escreveu uma carta. "Querido Thây. Eu pensei que minha árvore já estava morta, porque por muito tempo eu não tive nenhum desejo em meu coração. Pela manhã eu acordei e de repente senti um novo desejo, um broto novo que vem da árvore que pensei não tivesse nenhuma vida.”

 

O Buda teve um desejo muito profundo, mas não era por dinheiro, fama, poder ou sexo. Siddhartha, que se tornou o Buda, tinha tido bastante disso quando era um príncipe. O desejo dele era transformar todo o seu sofrimento, estar contente e ajudar outras pessoas a sofrer menos. Ele não quis seguir o pai e se tornar um rei ou político. O Buda ainda está nos ajudando depois de 2.600 anos. Quando se tornou um monge, Siddhartha simplesmente viveu; ele só teve três roupões e uma tigela e caminhou por todos os lugares. Ele viveu assim durante quarenta anos. Ele trouxe felicidade a si mesmo e a outras incontáveis pessoas sem desejar riqueza, sexo, poder e fama. 

 

Para ilustrar o terceiro tipo de comida, o Buda deu o exemplo de um jovem que quis viver muito, mas havia dois homens fortes que queriam matá-lo. Eles o arrastaram para uma fogueira com carvão ardente, e embora tenha lutado, eles o dominaram e o lançaram na fogueira. O Buda disse que nosso desejo é como esses dois homens fortes. Nossos desejos podem nos arrastar a uma fogueira com carvão ardente ou podem nos conduzir para a felicidade, saúde e paz. Se você permitir que o desejo por riqueza, sexo, poder, fama ou vingança o subjugue, então você estará sendo arrastado por esses  dois homens fortes para a fogueira. Pergunte, "Onde é que meu desejo me leva? Qual é sua natureza?” É por uma casa maior, um trabalho melhor, um grau, a fama, uma posição alta na sociedade ou é algo mais profundo? Não deixe seu desejo ser pequeno, ele deveria ser muito grande. Se não for um grande desejo você será empurrado por muitos desejos menores. 

Por favor, gaste algum tempo para escrever seu desejo mais profundo. Você quer viver como uma pessoa livre sem preocupações? O desejo de ser uma pessoa livre vale muito a pena. Ser livre significa que você não será mais vítima do medo, raiva, desejo ou suposições. Você quer isto? Talvez você queira, mas não quer o bastante. Você tem outros desejos tais como querer uma casa maior ou um carro melhor ou comida mais gostosa. Esses poucos desejos o distraem de seu desejo mais nobre. Se o desejo de Siddhartha para liberdade não tivesse sido forte, ele não teria sido capaz de superar os desejos sensuais. 

 

Se quiser perceber quais são seus desejos profundos, você tem que realmente querer. Talvez você deseje uma comunicação melhor com seu parceiro. Talvez você tenha dificuldade com seu parceiro e vocês não possam olhar mais um para o outro. Talvez você deseje uma relação mais íntima com seus filhos. Quando você e sua família estiverem contentes, então você terá a oportunidade de ajudar outras pessoas e seu país. 

 

Muitos de nós queremos ajudar nosso país e a espécie humana inteira. Mas porque este desejo não é nutrido o bastante por nosso ambiente, nos distraímos facilmente. Tornar-se um monástico é como se unir a uma revolução; você tem que estar disposto a deixar tudo porque você quer muito a liberação. 

 

Algumas pessoas gastam a vida inteira só tentando fazer vingança. Este tipo de desejo ou volição não só trará grande sofrimento a outros, mas para si mesmo também. Ódio é um fogo que queima em toda alma e só pode ser amenizado através da compaixão. Mas onde nós achamos compaixão? Não é vendido no supermercado. Se fosse, nós só precisaríamos trazer para casa e poderíamos resolver todo o ódio e violência no mundo muito facilmente. Mas a compaixão só pode ser produzida em nosso coração por nossa própria prática.

 

Agora mesmo os Estados Unidos estão queimando com medo, sofrimento, e ódio. Se para aliviar nosso sofrimento só temos que nos voltar a nós mesmos e buscar entender, por que nós somos tão violentos? O que fez os terroristas nos odiarem tanto que eles estão dispostos sacrificar as próprias vidas e criar tanto sofrimento para outras pessoas? Nós vemos o seu grande ódio, mas o que há embaixo disto? Injustiça. Claro que nós temos que achar um modo para parar a sua violência, e nós podemos mesmo manter pessoas presas na prisão enquanto o seu ódio queima. Mas o mais importante é olhar profundamente e perguntar, "Que responsabilidade temos pela injustiça no mundo? " 

 

Às vezes alguém que amamos - nosso filho, nosso cônjuge, ou nosso pai - diz ou faz algo cruel e então sofremos e ficamos bravos. Pensamos que só nós sofremos, mas a outra pessoa está sofrendo também. Se ele não estivesse sofrendo, não teria falado ou reagido com raiva. A pessoa que nós amamos não conhece uma saída para o seu sofrimento. É por isto que nossos amados despejam todo seu ódio e violência em nós. Nossa responsabilidade é produzir a energia de compaixão que tranqüilize nosso coração e nos permita ajudar a outra pessoa. Se nós castigarmos a outra pessoa, ela sofrerá mais.

 

Respondendo à violência com violência só pode trazer mais violência, mais injustiça, e mais sofrimento, não só para os outros, mas também para nós mesmos. Esta sabedoria está em cada um de nós. Quando nós respiramos profundamente, podemos tocar esta semente de sabedoria em nós. Eu creio que se a energia de sabedoria e de compaixão nas pessoas pudesse ser nutrida, mesmo que durante uma semana, o nível de raiva e ódio no país seria reduzido. Eu chamo a todos para praticar acalmando e concentrando nossas mentes, regando as sementes de sabedoria e compaixão que já estão em nós, e aprendendo a arte do consumo consciente. Se nós pudermos fazer isto, criaremos uma verdadeira revolução pacífica, o único tipo de revolução que pode nos ajudar sair desta situação difícil. 

 

Algumas pessoas podem pensar que a vida de um monástico é misteriosa. Mas no monastério, tudo que nós fazemos é a prática de produzir compaixão e olhar para todas as espécies com os olhos de compaixão e amor. Para fazer isto, nós temos que ter muito cuidado com o que consumimos. Se nós estivermos comendo uma tigela de arroz, desfrutando um campo de flores, ou nutrindo nosso desejo mais profundo, praticamos isto tão atentamente possível, consciente de cada respiração. 

 

A QUARTA NUTRIÇÃO: CONSCIÊNCIA

 

O quarto tipo de comida é a consciência. No Budismo nós falamos de consciência como tendo dois níveis. O nível mais baixo é chamado consciência armazenadora e o nível superior é chamado consciência mental. Quando nós pensamos, calculamos ou sonhamos, estamos trabalhando no nível da consciência mental. A consciência mental é como uma sala de estar. Debaixo está um porão muito grande, a consciência armazenadora. Tudo que você não gosta põe embaixo no porão. A consciência armazenadora guarda tudo na forma de sementes. É como a terra, se você molhar essas sementes, elas brotam.

 

Cinqüenta e um tipos de sementes, saudáveis e não saudáveis vivem na consciência armazenadora. Sementes saudáveis são sementes de amor, perdão, generosidade, felicidade e alegria. Sementes não saudáveis incluem ódio, discriminação e desejo. De acordo com a psicologia budista, quando estas sementes se manifestam são chamadas formações mentais. Por exemplo, nossa raiva é uma formação mental. Quando não estiver se manifestando, nós não nos sentimos bravos. Mas isto não significa que a semente de raiva não está em nós. Todos temos a semente de raiva que dorme em nosso porão, nossa consciência armazenadora. Nós podemos brincar e podemos nos divertir e não sentimos raiva, mas se alguém vem e rega a semente de raiva em nossa consciência armazenadora, ela começará a brotar e entrará em cima na nossa sala de estar. No princípio era só uma semente, mas uma vez que foi regada, surgirá e se tornará a formação mental de raiva, levando embora toda a nossa felicidade. 

 

O Buda usou a seguinte imagem para ilustrar o quarto tipo de nutrição. Um criminoso estava preso. O rei deu a ordem para apunhalá-lo com cem facadas. O criminoso não morreu. O mesmo castigo foi repetido ao meio-dia, e pela noite. Ainda assim, ele não morreu. O castigo foi repetido no dia seguinte, e no próximo. Da mesma maneira, nós nos permitimos apunhalar a nós mesmos centenas de vezes por dia através de formações mentais negativas. Quando qualquer semente se manifesta em nossa consciência mental, nós a absorvemos e isto é chamado alimento de consciência, a quarta nutrição. Se nós permitirmos que a raiva entre em nossa consciência mental e fique durante uma hora inteira, durante toda aquela hora nós estaremos comendo raiva. Quanto mais nós comermos raiva, mais a semente da raiva cresce. Se a semente de bondade surge em sua consciência mental, e você puder manter ela lá durante uma hora inteira, então durante aquele tempo você estará consumindo uma hora inteira de bondade.

 

Nós podemos ajudar uns aos outros regando as sementes saudáveis em nossa consciência armazenadora. Nós podemos dizer aos que estão próximos a nós, "Querido, tenhamos cuidado para não regar as sementes não saudáveis em nós. Reguemos só as sementes saudáveis em nós e então poderemos dar alimento nutritivo para nossa consciência." Quando nós regamos sementes de perdão, aceitação e felicidade na pessoa que amamos, estamos lhe dando alimento muito saudável para a sua consciência, como se nós estivéssemos cozinhando uma refeição saudável deliciosa para ela. Mas se nós constantemente regamos a semente de ódio, desejo e raiva dentro nosso amado, nós estaremos o envenenando.

 

Nós poderíamos nos sentar com nossa família e escrever um acordo que todo mundo pudesse assinar junto, comprometendo a regar as sementes saudáveis uns nos outros. Se nós pudermos praticar deste modo então nossos filhos poderiam praticar também. Um acordo assim poderia ser a fundação de nossa felicidade. Se você se nutrir com as quatro nutrições, ao consumir uma dieta saudável de alimentos comestíveis, sensações, desejos, e formações mentais, então você e seus familiares se beneficiarão de modo concreto. Budismo passa a não ser apenas ensinamentos abstratos, mas algo que muda sua vida diária. 

  

O Buda disse, "Nada pode sobreviver sem comida”. Esta é uma verdade muito simples e muito profunda. Amor e ódio ambos são coisas vivas. Se você não nutrir seu amor, ele morrerá. Se você cortou a fonte de nutrição para sua violência, sua violência morrerá. Se você quiser que seu amor dure, você tem que alimentá-lo diariamente. Amor não pode viver sem comida. Se você negligenciar seu amor, depois de um tempo ele morrerá e o ódio pode surgir. Você sabe nutrir seu amor?

 

Se nós não dermos comida ao ódio, ele também morrerá. Ódio e sofrimento crescem mais porque diariamente nós os nutrimos, lhes dando mais comida. Com que tipo de comida você tem nutrido seu desespero e seu ódio? Se você estiver deprimido, você pode não ter nenhuma força e nenhuma energia sobrando. Você pode sentir que quer morrer. Por que você se sente assim? Nossa depressão não vem do nada. Se nós pudermos reconhecer a comida que nutriu nossa depressão, podemos deixar de consumi-la. Dentro de algumas semanas nossa depressão morrerá de fome. Se você não sabe o que está regando sua depressão, continuará fazendo as mesmas coisas diariamente. O Buda disse que se nós soubermos como olhar profundamente em nosso sofrimento e reconhecer o que o alimenta já estamos no caminho de libertação. 

 

A saída para o nosso sofrimento é consumo consciente, não só para nós mesmos, mas para o mundo inteiro. Se nós soubermos regar as sementes de sabedoria e compaixão em nós, estas sementes se tornarão fontes poderosas de energia que nos ajudarão a perdoar os que nos feriram. Isto trará alívio à nossa nação e ao nosso mundo.

 

(Traduzido do livro “Calming the fearful mind” – Thich Nhat Hanh –por Leonardo Dobbin)

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