Sangha Virtual

 Estudos Budistas

Tradição do Ven. Thich Nhat Hanh

 

Ordem Interser (parte II)

 

Eu acredito que o encontro entre o budismo e o Ocidente vai dar origem a algo muito importante. O Ocidente possui vários valores como a ciência, o espírito de investigação livre, a democracia. Se esses valores se encontrarem com o budismo, a humanidade ganhará algo muitíssimo novo e estimulante. (...)

 

O princípio budista de agir e ver as coisas de forma não dualista, se combinado com a maneira ocidental de fazer as coisas, poderá mudar totalmente nosso sistema de vida. O que os budistas norte-americanos estão fazendo é importante para todos nós: trazer o budismo para a civilização ocidental.

 

O budismo não é um só. Os ensinamentos do budismo são muitos. Ao entrar num país ele toma uma nova forma. Quando eu visitei pela primeira vez uma comunidade budista nos Estados Unidos, perguntei a meu acompanhante: - Por favor, mostre-me seu Buda, o Buda americano. A pergunta surpreendeu meu amigo porque ele pensava que Buda fosse universal. Na China existe o Buda Chinês, no Tibete o Buda Tibetano e, também, os ensinamentos diferem. A forma de ensinamento budista neste último país é diferente da dos outros países. Budismo para ser budismo tem que se apropriar da psicologia e cultura da sociedade em que serve. Minha pergunta era muito simples: - Onde está seu bodhisattva? Mostre-me um bodhisattva americano. Meu amigo não soube fazê-lo. (...)

 

Eu gostaria de apresentar a vocês uma forma de budismo que pode ser facilmente aceita aqui no Ocidente. Temos experimentado essa forma de budismo ao longo dos últimos 20 anos e ela cabe muito bem na sociedade moderna.

 

A Ordem Tiep Hien foi fundada no Vietnã durante a guerra. Deriva a Escola Zen de Lin Chi e está em sua 42a geração. É uma forma de budismo engajado, budismo aplicado na vida diária, na sociedade, e não somente em centros de retiro. Tiep Hien são palavras vietnamitas de origem chinesa. Eu gostaria de explicar o seu significado porque se tomará mais fácil compreender o espírito dessa ordem.

 

Tiep quer dizer estar em contato. A noção de budismo engajado já aparece na palavra Tiep. Antes de tudo temos que estar em contato conosco mesmos. No mundo moderno a maioria de nós não quer ficar em contato consigo mesmo. Preferimos nos pôr em contato com outras coisas, como a religião, o esporte, a política ou um livro - queremos esquecer a nós mesmos. Sempre que temos um tempo de lazer convidamos, logo, alguma coisa para entrar em nós, como a televisão, por exemplo; abrindo-nos para que ela venha até nós e nos colonize. Assim, antes de tudo, em contato significa em contato consigo mesmo, a fim de encontrar a fonte da sabedoria, do entendimento, da compaixão em cada um de nós. Estar em contato consigo mesmo é o sentido da meditação; estar consciente do que está acontecendo no seu corpo, nos seus pensamentos, na sua mente. Esse é o primeiro significado de Tiep.

 

Significa também estar em contato com os Budas e bodhisattvas, pessoas cujo pleno entendimento e compaixão são tangíveis, efetivos. Estar em contato consigo mesmo quer dizer estar conectado com a fonte da sabedoria e compaixão. As crianças compreendem que Buda está nelas próprias. No primeiro dia de um retiro que houve em Ojai, na Califórnia, um menino afirmou ser Buda. Eu lhe disse que isso era verdade em parte, pois às vezes ele era às vezes não dependendo do grau em que sua mente estivesse desperta.

 

A segunda parte do significado de Tiep é dar continuidade, fazer algo perdurar. Significa que o caminho para o entendimento e a compaixão, aberto por Buda e bodhisattvas, deve ser continuado, Isso só é possível quando entramos em contato com nosso verdadeiro eu; e isso eqüivale a perfurar o solo até atingir a fonte de água fresca escondida sob a terra para que o poço se inunde dela. Quando entramos em contato com nosso verdadeiro ser, a fonte de sabedoria, entendimento e compaixão jorram como água. Esta é a base de todas as coisas. Estar conectado com nosso verdadeiro ser é necessário para dar continuidade ao caminho iniciado por Buda e bodhisattvas.

 

Hien significa momento presente. Temos que estar no aqui e agora, porque só o presente é real, só no momento presente é que podemos estar vivos. No budismo não praticamos em nome do futuro ou para renascer no paraíso, mas sim para ser paz, compaixão e alegria no momento presente. Hien quer também dizer tornar real, manifestar, realizar. O amor e o entendimento não são apenas conceitos e palavras; são realidades manifestadas em si próprio e na sociedade. É isso que Hien significa.

 

É difícil encontrar, no inglês ou no francês, palavras que transmitam o significado de Tiep Hien. Mas existe um termo no suttra Avatamsaka que transmite bem o espírito dessa palavra. É o termo interser, isto é, ser mutuamente. Interser é uma palavra nova, e espero que seja incorporada às palavras dos dicionários. Nós já falamos anteriormente acerca do todo contido no um e do um contido no todo. Numa folha de papel podemos ver o todo: a nuvem, a floresta, o lenhador. Eu sou; portanto, você é. Você é; portanto, eu sou. Esse é o significado da palavra interser. Nós não somos, nós intersomos. (...)

 

Os preceitos geralmente começam com advertências relativas ao corpo, como não mate. Os preceitos da Tiep Hien aparecem, de certa forma, em ordem inversa - os que dizem respeito à mente vêm antes. No budismo a mente é a raiz de tudo. Os preceitos da Ordem de Interser são os seguintes (*):

 

QUINTO - Não acumule fortuna enquanto milhões estão passando fome. Não tenha como meta de vida, a fama, o proveito, a riqueza ou o prazer sexual. Leve uma vida simples e partilhe seu tempo, energia e recursos materiais com aqueles que necessitam.

 

O Sutra das oito realizações dos grandes seres diz "A mente humana está sempre à caça de posses e nunca se satisfaz. Os bodhsattvas se movem em direção oposta e seguem o princípio da auto-suficiência. Eles vivem de maneira simples, a fim de praticarem o caminho, e consideram a realização da perfeita compreensão sua única carreira". No contexto da sociedade moderna viver em simplicidade significa também permanecer o mais livre possível da destrutiva máquina social e econômica, evitando, assim, o stress, a depressão, a pressão alta e outras doenças modernas. Devíamos fazer todos os esforços para evitar as pressões e ansiedade que assolam a vida moderna. A única forma é consumir menos. Uma vez que somos capazes de viver simplesmente e felizes, seremos capazes de ajudar os outros.

 

SEXTO - Não guarde ódio ou rancor. No momento em que esses sentimentos surgirem, medite na compaixão para poder compreender em profundidade as pessoas que os causaram. Aprenda a ver os outros com os olhos da compaixão.

 

Quando a irritação e a raiva surgem, temos que estar conscientes e tentar entendê-las. Uma vez que as entendemos, nos tomamos mais capazes de perdoar e amar. Meditar na compaixão significa meditar no entendimento. Se não compreendemos, não podemos amar.

 

"Aprenda a olhar os outros seres com olhos de compaixão". Esta frase é diretamente extraída do capítulo sobre Avalokitesvara no Sutra de Lótus. Você talvez gostaria de escrevê-la e colocá-la no local em que se senta para meditar. Seu original chinês tem apenas cinco palavras: "Olhos compassivos olhando seres vivos". Quando recitei pela primeira vez o Sutra de Lótus, fiquei em silêncio ao chegar a essas cinco palavras. Eu sabia que elas bastavam para mudar toda a minha vida.

 

SÉTIMO - Não se deixe perder em dispersões ou no ambiente que o cerca. Aprenda a focar sua atenção na respiração para recobrar o controle do corpo e da mente. Aprenda a manter a mente alerta e a desenvolver entendimento e concentração.

 

Este preceito está no meio. É o coração dos 14 preceitos. O mais importante deles é viver em plena consciência. Sem este preceito, sem a mente estar desperta, os outros preceitos não podem ser totalmente observados. É como carregar uma haste. Na Ásia usavam carregar coisas penduradas nas extremidades de uma haste colocada sobre os ombros. Este preceito é como o meio da haste que você carrega sobre os ombros.

 

OITAVO - Não diga palavras que possam criar discórdia e causar ruptura na comunidade. Todos os esforços devem ser empregados no sentido de reconciliar e resolver os conflitos, por menores que sejam.

 

Agora chegamos ao segundo grupo de preceitos; referem-se à fala. Os sete primeiros lidam com a mente, dois com a fala e cinco com o corpo. Este preceito se refere à reconciliação, ao esforço para estabelecer a paz, não somente na família, mas também na sociedade. Para ajudar a reconciliar um conflito, temos que estar em contato com ambos os lados. Temos que transcender o conflito; se ainda estamos em conflito, fica difícil reconciliar. Temos que ter um ponto de vista não dualístico para podermos ouvir ambos os lados e compreender. O mundo precisa de seres assim, com capacidade de compreender e ter compaixão.

 

NONO - Não diga mentiras para favorecer seus interesses pessoais ou para impressionar os outros. Não diga palavras que causem divisão e rancor. Não espalhe notícias que você não sabe ao certo. Não critique nem condene coisas das quais você não tem certeza.

 

Fale sempre a verdade, e construtivamente. Tenha coragem de denunciar as situações injustas, mesmo quando elas possam ameaçar sua segurança. As palavras que dizemos podem criar amor, confiança e felicidade em tomo de nós, ou podem criar um inferno. Devemos ter cuidado com o que dizemos. Se nossa tendência é falar em demasia devemos nos tornar conscientes disso e aprender a falar menos. Temos que estar conscientes do que falamos e dos resultados de nossa fala. Há uma gatha que pode ser recitada antes de atender ao telefone:

 

Palavras podem percorrer milhares de milhas.

Elas se destinam a construir compreensão e amor.

Cada palavra deve ser uma jóia,

uma bela tapeçaria.

           

Devemos falar construtivamente. Podemos, em nossa fala, tentar não causar mal-entendidos, rancor ou ciúme; e sim aumentar o entendimento e a mútua aceitação. Ela pode até mesmo ajudar a reduzir nossa conta telefônica. O nono preceito requer, também, franqueza e coragem. Quantos de nós são suficientemente corajosos para denunciar a injustiça numa situação em que falando a verdade a segurança pessoal pode ser ameaçada?

 

DÉCIMO - Não use a comunidade budista para ganhos ou proveitos pessoais. Nem a transforme em partido político. Contudo, uma comunidade religiosa deve tomar posição clara contra a opressão e a injustiça e esforçar-se para mudar a situação sem engajar-se em conflitos partidários.

 

Isso não significa que devemos nos silenciar acerca da injustiça. Significa apenas que devemos fazê-lo com plena consciência e não tomar partido. Devemos dizer a verdade e não, apenas, pesar as conseqüências políticas. Se tomamos partido, perdemos nosso poder de ajudar e mediar o conflito.

 

Durante uma visita à América conheci um grupo de pessoas que queriam angariar fundos para ajudar o governo do Vietnã a reconstruir o país. Perguntei se eles também gostariam de fazer algo para ajudar o povo-de-barco e eles disseram que não. Achavam que politicamente não era bom falar sobre o povo-de-barco porque causaria descrédito ao governo do Vietnã. Para terem êxito numa coisa eles se abstêm de fazer outra coisa que acham certa.

 

 

(*) Nota: Os primeiros preceitos foram discutidos em um texto anterior. Os demais preceitos serão discutidos em um texto futuro.

(Do livro “Caminhos Para a Paz Interior – Thich Nhat Hanh - 1987)

 

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