Sangha Virtual

 Estudos Budistas

Tradição do Ven. Thich Nhat Hanh

 

Ouvindo as ondas

(Sister Dang Nghien)

 

No inverno eu trabalhei com uma irmã mais velha e alguns praticantes leigos para preparar almoço para 300 pessoas que estavam nos visitando. Nesse dia fazia -4oC e tudo do lado de fora estava congelado e coberto com uma camada de gelo. A água também congelou nos canos e, portanto apenas tínhamos água dentro de prédio e não fora onde estava a área de lavagem. No final daquela noite, meus dedos pareciam que estavam queimando. Eu mal podia movê-los e o pensamento de molhar minhas mãos me assustava! (...)

 

Embora já fosse tarde da noite, eu sentei na minha cama no escuro e massageei minhas mãos. Uma mão cuidava da outra e depois era cuidada. Coloquei muita loção em minhas mãos e massageei dedo por dedo, as palmas, e o dorso da mão. Então minhas mãos massagearam meus pés, devagar e com atenção. Depois massagearam minhas pernas, minhas costas, meu pescoço, minha cabeça, minha face e meus ouvidos. Havia muito carinho e suavidade por parte das minhas mãos! Eu me senti muito grata a elas.

 

Obrigado, mãos, por estarem aqui para me ajudar a abraçar alguém, escrever palavras de confiança e empatia, levantar um pote de arroz, fazer um gesto. Obrigado pés por estarem aqui para me permitir dar passos leves e estáveis que curam meu corpo e mente. Obrigado minhas costas, por me ajudar a sentar ereta, a ficar de pé e reverenciar meus ancestrais e pequenas criaturas. Eu sentei lá massageando cada parte de meu corpo e agradecendo por isso. Eu já tinha feito massagens em outras pessoas, mas nunca tinha pensado em massagear meu próprio corpo. (...) Porque eu nunca havia pensado em massagear meu próprio corpo? Enquanto não tivermos profundo amor e gratidão por nossos próprios corpos e vidas, como poderemos amar verdadeiramente os outros?

 

Eu senti uma porta dentro de mim abrindo bem larga. Eu posso aceitar mais e mais agora, do que foi, do que é, e do que será. Posso aceitar a morte de John. É claro que ainda há momentos do dia, especialmente quando estou na meditação sentada ou deitada que sinto um aperto no meu peito e garganta e tenho que abrir bem a minha boca e respirar. Mas eu não urro e nem choro alto como fiz no ano anterior. A dor ainda está em mim, mas eu posso voltar mais facilmente ao momento presente, onde os pássaros continuam a pousar nos galhos e a saltar no chão congelado; onde o sol nascente é profundamente rosa; onde a fé e o amor de amigos viajam imperturbável pelo tempo e espaço; onde tudo está presente. Nada nunca é perdido. Eu não sinto que esteja procurando mais por nada e apenas desejo de estar consciente de tudo que está aqui.

 

Quando cheguei a Plum Village, não podia reconhecer a intensidade de um sentimento até que ele estivesse no seu máximo. Neste tempo eu dificilmente poderia respirar quando as ondas quebrassem.

 

Comumente reconhecemos uma onda apenas quando está no seu pico ou na descendente. Mas uma onda não começa no seu pico ou no vale. Uma onda começa milhas antes, bem abaixo da superfície do oceano. Quando ela tem momento e força suficientes, vem para a superfície, chega a seu máximo, quebra e então é seguida por outra onda.

 

Era assim para mim naquelas horas que eu sentava desabafando com a irmã Thoai Nghiem. Eu estava experimentando uma onda depois da outra, e elas continuavam a quebrar, me sufocando e me forçando a reconhecê-las. Muitos de nós experimentamos isso em nossas vidas, uma onda de tristeza, uma de raiva, uma de paixão ou uma onda de ciúme. Há muitas ondas que atravessamos nas nossas vidas diárias, momento a momento – uma onda de percepção, uma de julgamento ou uma onda de pensamento. Elas todas se formam, pequenas e grandes, uma depois da outra e algumas quebram com força incrível, tal como a morte de uma pessoa amada, o fim de um relacionamento ou nossa própria morte iminente, nossa onda final.

 

(...)Sentimentos fortes surgem quando estamos doentes – mesmo quando é um resfriado, um ferimento pequeno ou uma doença crônica – podemos sentir insegurança, medo, rejeição, solidão e auto-depreciação. Com consciência dessas ondas, podemos ficar presentes para elas e transformá-las. Se não aprendermos a cuidar delas, se apenas ficarmos inconscientes com remédios ou entretenimento, então quando ficarmos doentes e perto da onda final, estas coisas que não tomamos cuidado surgirão e a mente pode se perder, porque não pode reprimir ou aguentar mais essas coisas.

 

Eu pratico o reconhecimento da onda quando ela desce, de forma que não serei como uma pessoa bêbada que diz “Eu não estou bêbado!” ou uma pessoa raivosa que grita “Eu não estou com raiva!” Eu estou aprendendo cada vez mais a estar consciente dos resultados das ondas e do pico. Gradualmente, estou aprendendo a ficar consciente da onda antes que ela atinja seu pico. E aprendendo também a ficar consciente dela até mesmo antes que ela se manifeste no oceano – quando a onda ainda está nas profundezas da água, milhas e milhas atrás, quando se iniciou como um pensamento ou um sentimento - e quando ela começa a subir disparada por uma imagem ou som. É claro, eu também estou aprendendo a apreciar que uma onda não termina quando desaparece da superfície, mas continuará nas profundezas de forma a formar outra onda.

 

Na tradição budista há três estágios no caminho da prática, chamado Escuta, Reflexão e Prática. O primeiro estágio, Escuta, vem das condições que existiam no tempo do Buda quando não havia rádio, TV, DVD ou internet. Os monges e monjas ouviam diretamente os ensinamentos do Buda, chamados de palestras de Dharma. (...) Tendo ouvido, eles refletiam posteriormente e então praticavam os ensinamentos.

 

Não recebemos informações apenas pela escuta. Nos tempos modernos, especialmente quando estamos fora do monastério, nossos seis órgãos dos sentidos são constantemente bombardeados com estímulos. Nossos olhos recebem imagens dos filmes e da TV, dos anúncios que vemos e das revistas. Nossos ouvidos absorvem sons ao ouvir o rádio, músicas e conversas. Nosso nariz é bombardeado com fragrâncias. Nossa língua é exposta a comida, nutrientes e também tóxicas. Nosso corpo experimenta o toque e outras sensações. Finalmente nossa consciência mental tem a capacidade de estar consciente dos outros cinco sentidos enquanto eles recebem estímulos do ambiente. Nossa mente em si mesma também percebe, reflete e gera pensamentos.

 

Através desses seis órgãos dos sentidos, recebemos muitas informações e isto cria as correntes subjacentes da nossa consciência, como as correntes muito abaixo da superfície do oceano. Dia e noite, momento a momento, os estímulos vem. A prática é se tornar mais consciente desses estímulos iniciais e dos estímulos que continuam acontecendo.

 

Se pudermos estar conscientes no momento que o estímulo está em contato com nossos sentidos – o momento em que vemos algo na rua, ouvimos o telefone tocar ou vemos algo acontecer – podemos respirar calmamente e as percepções podem eventualmente não se formar. Mesmo se o corpo experimenta “excitação” ou “agitação”, nossa plena atenção da respiração pode manter um padrão de respiração calma ou ao menos reduzir a sua frequência.

 

Podemos perguntar a nós mesmos: “O que é isto que estou colocando para dentro de minha consciência? O que é isto que percebi? Como estou reagindo a esta situação? Ou podemos simplesmente reconhecer que: “Meu corpo está tenso agora. Não sei por que, mas me sinto chocado. Não posso respirar. Minha voz parece mais aguda.” Estes são sinais corporais que nos ajudam a chamar um sentimento pelo seu nome verdadeiro ou ficar consciente: “Há um sentimento aqui” ou simplesmente que “há algo acontecendo aqui”. Somente isto já é despertar. Isto é o que chamamos “plena atenção”.

 

Aprender a prática em Plum Village teve muita sinergia com o que aprendi na escola médica sobre como o cérebro captura informação e nos provê de percepção. Por exemplo, vemos algo e temos a percepção  que é uma cobra. A percepção leva a um sentimento de medo. Este sentimento é registrado na área límbica, que por sua vez libera os hormônios das emoções. Neurotransmissores liberados de diferentes áreas do cérebro induzem a respostas fisiológicas tais como o aumento das batidas do coração e da respiração, a contração dos músculos esqueléticos, a dilatação da pupila e a diminuição das funções gastro-intestinais. Esta é a resposta de stress que as pessoas chamam de resposta “luta ou fuga”. Muitos de nós experimentamos essa resposta de stress muitas vezes por dia.

 

Nossas percepções sensoriais são como um trilho. Quando passamos uma vez, uma suave linha é marcada. Ela pode desaparecer se não a usarmos novamente. Contudo, se viajarmos por ela frequentemente, se tornará uma trilha, uma rua e então uma estrada. Quando experimentamos uma emoção repetidas vezes, ela se torna um hábito. Quando o caminho neural fica bem estabelecido, apenas um simples olhar ou som são necessários para nós imediatamente termos a percepção de perigo, ódio ou irritação. Imediatamente temos uma resposta fisiológica. Talvez não seja uma cobra na estrada, mas apenas um pedaço de corda. Ainda assim iremos passar por toda essa experiência dolorosa!

 

Nossos sentimentos por outras pessoas seguem o mesmo caminho. Quando não gostamos ou estamos irritados com alguém, apenas a visão ou o som daquela pessoa podem disparar a resposta de stress. Nossos sentimentos podem se tornar tóxicos para nós. A outra pessoa pode nem mesmo saber o que está acontecendo. Ainda assim os compostos químicos liberados na nossa corrente sanguínea podem trazer a resposta de stress ao nosso próprio corpo. Isto é escrito repetidas vezes na nossa memória remota.

 

Deste modo, um pequeno desagrado pode se tornar ódio ou outra emoção forte. Podemos pensar sobre aquela pessoa dia e noite. Este objeto da nossa mente pode ser alguém que estamos atraídos ou que não gostamos. Pode ser uma situação passada ou uma antecipação do futuro. Deste modo, nosso sofrimento pode também ser ensaiado, fortificado e firmemente estabelecido em nós. A depressão pode ter se estabelecido como um circuito neural forte no nosso cérebro assim como tendências suicidas. Portanto, podemos até dizer que não queremos sofrer, mas de fato, podemos muito bem estar viciados no sofrimento, psicologicamente e fisiologicamente.

                                              

Muitos de nós pensamos que florescemos nas ondas da paixão e da excitação. Quando a onda vem, ela quebra e quebramos com ela. Nós nos tornamos a onda. Nós somos a onda. Pensamos que sem estas ondas despontando e quebrando estaremos entediados! Defendemos a raiva e dizemos que ela nos dá energia. Eu costumava acreditar que a depressão era necessária para escrever grandes poesias! Defendemos esta idéia porque não conhecemos nada melhor que as ondas. Por toda nossa vida atravessamos de uma onda para a outra, e acreditamos que apenas as ondas existem.

 

Mas abaixo das ondas há um imenso oceano que podemos nunca ter explorado. Acima das ondas há o espaço infinito. Em alguns momentos, enquanto sentamos quietamente, ouvindo nossa respiração ou sorrindo para uma flor, podemos tocar a imensidão do espaço – que significa não subir e descer, não investir e quebrar repetidas vezes, e significa ser estável e parado. É claro que não cessamos de ter percepções e sentimentos. Eles podem estar presentes, mas não nos tornamos eles. Nós podemos reconhecê-los enquanto estivermos no chão e não na onda.

 

Lembro de uma noite quando estava com minhas irmãs monásticas na mesa de jantar com o nosso professor. Todos estavam comendo menos eu. Eu estava quietamente chorando. Thay e as outras irmãs continuaram a comer quietamente e pacificamente. Depois da refeição, enquanto outras ajudavam a limpar a mesa, Thay sinalizou para que eu o seguisse. Andamos para a sala de meditação que era perto da sala de jantar. O carpete da sala de meditação era creme claro, macio e espesso. Thay começou a andar pela sala muito devagar. Enquanto eu andava, fiquei consciente da minha respiração e das sensações do corpo. Isto foi o suficiente para acalmar a onda de sofrimento que eu tinha experimentado na mesa de jantar.

 

Eu estava andando atrás de meu professor. Thay andava sempre muito devagar e depois de um tempo, vi que havia inúmeras pegadas. Percebi que não podia dizer quais eram dele e quais eram minhas. Não havia nem começo nem fim. É assim também com o sofrimento. O sofrimento não tem começo nem fim. Não tem uma causa única. Foi transmitido para nós pelos nossos ancestrais, pelos nossos pais, pelo nosso ambiente e pelo modo como vivemos os últimos anos. Paz, estabilidade e liberdade também funcionam da mesma maneira. Não tem começo nem fim e não tem uma causa única. Podemos escolher o caminho do sofrimento, sendo jogados de onda a onda, ou podemos pegar o caminho da liberdade nos treinando a cada momento, dia a dia. Literalmente passo a passo, respiração a respiração.

 

(Do livro “Healing”– Sister Dang Nghiem)

(Traduzido por Leonardo Dobbin)

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