Sangha Virtual

 Estudos Budistas

Tradição do Ven. Thich Nhat Hanh

 

Prática da Mente Incomensurável

 

Hoje, gostaria de oferecer-lhes uma outra maneira de cuidar de sua dor. De como suportar sua dor mais facilmente. De como viver com sua dor. De como aceitá-la com todo o sofrimento. É ótimo se você puder transformá-la, mas enquanto ela ainda está ali, há maneiras pelas quais você pode viver em paz com ela. O ensinamento budista sobre isso é bastante claro, bastante concreto. Tem a ver com o ensinamento do amor. Temos de praticar o amor direcionado a nosso próprio eu, corpo e mente. Devemos aprender como amar, e primeiro amar a nós mesmos. Amor não é apenas a vontade de amar. Amor é a capacidade de reduzir a dor e oferecer a paz e a felicidade. Tudo isso é prática. E vocês podem praticar.

 

No ensinamento do Buda, falamos em chegar à outra margem, paramita. Paramita significa que desta margem você vai para a outra margem. Da margem do sofrimento você atravessa o rio para a margem da emancipação, do não-sofrimento. Quanto tempo se leva para ir desta margem à outra? Às vezes, pode-se fazer isso bem rapidamente. Se você tiver uma irritação, você está nesta margem. Se você souber cuidar bem de sua irritação, ela será transformada em alguns minutos, e de repente você está na outra margem. Por favor, não pensem que só os Bodhisattvas ou Budas podem ir para a outra margem. Você também pode fazê-lo, várias vezes ao dia.

 

Toda vez que estiver sofrendo de uma aflição, como raiva, ódio, medo, irritação, você sempre pode praticar a travessia do rio para chegar à outra margem. O Buda disse que, se você quer chegar à outra margem, não fique simplesmente parado aqui rezando. "Por favor, outra margem, venha até aqui para que eu possa pisá-la". O Buda disse que você não deve fazer assim. Só se pode chegar à outra margem cruzando o rio, seja num barco ou nadando. Não se pode rezar para que a margem venha até você. E o bote é o Dharma. O Buda sempre disse: "Meu ensinamento é uma jangada para vocês cruzarem o rio do sofrimento. Usem-nos como uma jangada, e não como algo que vocês carreguem sobre suas cabeças". Então, como um bom praticante, você deve pegar a jangada, o bote, a fim de poder cruzar o rio do sofrimento por si próprio. Devemos aprender o meio de fazê-lo, o Dharma.

 

O método que vou apresentar-lhes é chamado da prática da mente incomensurável. Uma mente que pode ser medida não é uma mente muito grande. Um coração que pode ser medido não é um grande coração. É por isso que se deve praticar o coração incomensurável, que é um ensinamento muito importante do Buda. Há quatro elementos que formam o amor verdadeiro. Eles são maitri, traduzido por generosidade amorosa; karuna, traduzido por compaixão; mudita, traduzido como alegria; e upeksha, traduzido como equanimidade, não-discriminação. Praticamos para que estes elementos do amor verdadeiro transformem nosso coração em algo incomensurável. Isto é algo que se pratica na vida diária. À medida que nosso coração começa a aumentar, somos capazes de conter, de suportar, qualquer tipo de sofrimento. Pode ser que nem mesmo soframos, mesmo que abracemos o sofrimento dentro de nós.

 

Nas seis paramitas, os seis botes que cruzam o oceano do sofrimento, temos o bote da caridade, que significa autocontrole. Autocontrole é a capacidade de abraçar as dificuldades, de abraçar o medo, e não sofrer. Se seu coração é grande, você pode abraçar qualquer quantidade de dor e mesmo assim você não sofre. Este é um dos seis botes que nos leva à outra margem. Autocontrole não significa que você suprima o medo. A maneira chinesa de escrever é esta: este é o coração e este é um tipo de faca que pode causar a dor. O coração é tão grande que, mesmo que a faca esteja lá, ela não o afetará, e finalmente a faca se transformará numa não-faca.

 

O Buda usou uma imagem maravilhosa, e usou-a várias vezes em sua vida de ensinamentos. Ele dizia: suponha que você tem algo sujo. Se você derrama isto em sua vasilha de água, você não poderá bebê-la. Ninguém bebe tal água. Se você derramar urina, algum excremento, ou algo que você cuspa de seu estômago, então você não poderá usar toda a vasilha de água, você tem de jogá-la fora. Mesmo um pouquinho de sujeira que caia sobre seu copo, você não poderá bebê-la. Mas e se você joga essa vasilha de sujeira num grande rio? Se você joga a sujeira, talvez um quilo, talvez dez, num rio imenso, as pessoas de toda a área ainda poderão beber a água do rio. Isto porque o rio é grande, e não leva tempo algum para o rio transformar a sujeira. Da noite para o dia a sujeira não estará lá, porque uma imensa quantidade de água está circulando. A quantidade total de lama submersa será capaz de transformar o rio no qual ontem você jogou a sujeira, e o rio se torna cristalino, totalmente pronto para que você beba dele.

 

A diferença não está em você jogar ou não a sujeira. Você joga a sujeira, ela é real, ela existe. Mas se sua vasilha é pequena, então todo o conteúdo tem de ser descartado. Mas se a vasilha é grande, é um grande rio, daí você pode abraçar a sujeira facilmente e isto transformará a sujeira rapidamente, da noite para o dia. Seu coração também. Se seu coração é pequeno, então você não poderá suportar a quantidade de dor e sofrimento infligida em você pela sociedade, por outra pessoa. Mas se seu coração é grande, você pode viver com isso perfeitamente bem. Você pode abraçá-los, e não tem de sofrer.

 

Portanto, a prática das quatro mentes incomensuráveis é fazer com que seu coração aumente até se tornar um grande rio. E a maneira de fazê-lo é usar os instrumentos de maitri, karuna, mudita e upeksha. Sua essência é a prática da meditação, do olhar em profundidade. Ontem falamos sobre a salvação pelo insight. Você só pode ser salvo, ser libertado, pelo seu insight. E como o insight aparece? É preciso praticar a concentração. Você tem de praticar o olhar profundamente, e à medida que você continua a praticar o olhar profundamente, o insight vai surgir e libera-lo de seu sofrimento.

 

Mencius era um filósofo chinês muito conhecido. Ele perdeu seu pai quando era muito jovem, e sua mãe teve de se mudar para um bairro pobre da cidade para sobreviver. Ela ficava acordada até tarde da noite para trabalhar com bordados. Um dia, o garotinho chegou em casa muito sujo, com as roupas todas rasgadas. Ele tinha brigado com crianças da vizinhança. Tinha se tornado uma espécie de delinqüente infantil. Ela ficou com raiva, porque tinha grandes expectativas para seu menininho. Ela estava bordando. Parou e estava para castigá-lo, gritar com ele. De repente, ela parou, porque teve um insight. Ela foi capaz de ver que no bairro não havia escola. Havia apenas um matadouro. As crianças não iam à escola, e passavam o tempo brincando na rua ou em jogos do tipo sacrificar um porco ou um bezerro.

 

Se o adulto faz uma coisa, as crianças o imitam. Elas usariam uma batata doce crua para representar uma vaca, quatro varetas de incenso para fazer as pernas da vaca, e se reuniram para representar a matança. Elas imitavam os adultos. E, claro, brigavam e se xingavam uns aos outros. Aquele era o ambiente no qual a mãe do garoto o tinha colocado. No momento em que ia gritar com ele, a mãe compreendeu que a falha não era dele. Qualquer criança colocada naquele ambiente se tornaria a mesma coisa. Assim, ela não fez nada e não ficou mais com raiva. Esta é a salvação pelo insight.

 

Em vez disso, ela ficava acordada até mais tarde da noite, trabalhava duro e economizava o dinheiro. Três meses depois, pôde se mudar para um bairro melhor, onde havia escola, onde as crianças eram limpas e educadas. Ela não precisou castigar a criança, gritar com ela, sofrer. O garoto mais tarde se tornou um estudante dedicado e inteligente, e finalmente virou um filósofo muito famoso. Você não tem de sofrer se tiver insight - se compreender e se esta compreensão for fruto do olhar profundamente. Se sofremos tanto, é porque somos ignorantes. Se ficarmos com raiva de nosso pai, de nossa mãe, nosso filho ou filha, ou nosso parceiro, é porque ainda somos ignorantes.

 

A prática de olhar profundamente vai permitir-lhes ver como a outra pessoa ficou daquela maneira. Ele não era assim quando você se casou com ele, mas agora ele é assim, assim, muito difícil de conviver. E quem é responsável por isso? Coloque a questão diante de você e medite. Assim que me casei, ele não era assim. Quando me casei com ela, ela não era assim. Por que ela ficou tão insuportável agora? Quem é o responsável? Devo culpá-la, ou devo culpar a mim mesmo, ou culpar a sociedade? Todas essas questões ajudam sua meditação. Meditar significa confrontar a realidade e não fugir. Se você está fugindo de seus problemas reais, não está meditando corretamente. Você precisa sentar-se num pequeno monte de calma, de concentração. Você precisa se sentar num montinho de consciência de modo a confrontar estas dificuldades e olhar dentro da natureza desse sofrimento.

 

Se seu pai o considera como sua propriedade, como uma casa ou uma soma de dinheiro ou um carro, se ele o considera algo como um de seus pertences, ele acha que pode fazer qualquer coisa com você porque você é seu filho ou filha. Ele não sabe que você é uma pessoa, um ser humano, com o direito de pensar e agir e seguir aquilo que acredita ser bonito, bom e verdadeiro. Ele apenas quer que você siga o caminho que traçou para você.

 

Você tem de perguntar: por quê? Por que seu pai é daquela maneira, por que em torno de nós existem pais que são diferentes? Há pais que são capazes de tratar seus filhos e suas filhas como seres vivos livres, com grande respeito. Tenho praticado o insight e trato meus alunos com respeito, mesmo que sejam bem pequenos, porque tenho o insight de que só quando os tratamos desta forma o melhor deles poderá surgir. E isso não é para o benefício deles, mas para o meu, e para o de muitas pessoas, muitos seres vivos. Por saber tratar meus alunos desta maneira, tenho conseguido fazer desabrochar muitos talentos que estão enterrados em cada um deles. Tenho tido irmãos de e irmãs de Dharma. Tenho aprendido o Dharma, portanto o Buda abriu meus olhos. Estou liberto da minha estreiteza, meus preconceitos.

 

Se seu pai não tem sido capaz de ser assim apenas por não ter sorte, se você o acusa, se quer puni-lo, ele vai sofrer mais, e isso é tudo. Você não pode ajudá-lo. Somente quando você diz "Pai, eu o entendo, entendo porque você é assim. Seu ambiente era assim. Você não esteve em contato com o tipo de ensinamento ou insight que tenha uma natureza libertadora." Você não diz isso, mas fala isso a si mesmo. De repente, seu ódio, sua raiva em relação a seu pai simplesmente desaparece. Seu pai se torna alguém que precisa de sua ajuda, de seu amor, em vez da sua punição. Afastar-se de seu pai é uma forma de puni-lo. Você quer que ele sofra. Por isso você se afasta dele. Mesmo se você se mata, é com a intenção de fazê-lo sofrer. Você diz, "Veja, eu me matei por sua causa. Quero sofrer porque você me tratou como um animal, como uma posse sua.". Assim, mesmo que você se mate, se fugir de casa, isso não é infligir o sofrimento a si mesmo, mas a vontade de ferir, de fazer com que a pessoa que você considera como sendo a causa de seu sofrimento sofra.

 

Entre pais e filhos existe uma luta. Se você não praticar, se não for sábio, se os elementos de maitri, karuna, mudita e upeksha não estão lá em seu amor, então criamos o inferno um para o outro. Sempre, na luta entre pais e filhos, são as crianças que perdem, porque não se espera que elas respondam nos mesmos termos usados pelos pais. Os pais podem bater em seus filhos, mas as crianças não podem bater em seus pais. Os pais podem abusar de seus filhos com palavras, mas os filhos não. Por não poderem exprimir a violência que receberam, eles ficam doentes. A violência que eles recebem permanece dentro deles e procura um caminho para sair, para ser expressa. Se o jovem se enforca ou dá um tiro em si mesmo, ou seja, quer expressar sua raiva, sua frustração, sua violência, não há saída. Então, se você inflige alguma coisa sobre si mesmo, é porque você não tem outras formas de expressar a violência que existe em você, o ódio e a raiva em você. Você é a vítima da violência que recebeu de seus pais e da sociedade.

 

(Dharma Talk de Thich Nhat Hanh em Plum Village em 21 de julho de 1996).

(Traduzido por Carmem Feijó)

 

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