Sangha Virtual

 Estudos Budistas

Tradição do Ven. Thich Nhat Hanh

 

A primeira ceia - Gratidão

 

Durante uma conferência sobre paz e religião, um pastor protestante aproximou-se de mim perto do final de uma das refeições que fizemos juntos e disse: "Você é uma pessoa grata?" Fiquei surpreso. Eu estava comendo lentamente, e pensei: Sim, sou uma pessoa grata. O pastor prosseguiu: "Se você é realmente grato, como pode não acreditar em Deus? Deus criou tudo o que desfrutamos, inclusive o alimento que comemos. Como não acredita em Deus, você não é grato por nada."

 

Pensei comigo mesmo. Sinto-me extremamente grato por tudo. Todas as vezes em que toco a comida, sempre que vejo uma flor, quando respiro ar puro, sempre me sinto grato. Por que ele diria que não sou? Foi pensando nesse incidente, muitos anos depois, que propus a alguns amigos em Plum Village que celebrássemos todos os anos um Dia de Ação de Graças budista. Nesse dia, praticamos a verdadeira gratidão - agradecendo a nossos pais, mães, ancestrais, amigos e todos os seres por tudo. Se você encontrar aquele pastor protestante, espero que diga a ele que não somos mal-agradecidos. Somos profundamente gratos por todas as pessoas e todas as coisas.

 

Sempre que fazemos uma refeição, praticamos a gratidão. Somos gratos por estarmos juntos numa comunidade. Somos gratos por termos alimentos para comer, e realmente apreciamos a comida e a presença uns dos outros. Sentimo-nos gratos durante toda a refeição e todo o dia, e expressamos esse sentimento ficando completamente conscientes da comida e vivendo profundamente cada momento. É assim que tento manifestar minha gratidão a toda a vida.

 

Comer conscientemente é uma prática importante. Ela alimenta nossa consciência. As crianças são bastante capazes de praticar conosco. Nos mosteiros budistas fazemos nossas refeições em silêncio para tornar mais fácil prestarmos a mais completa atenção à comida e aos outros membros da comunidade que estejam presentes. E mastigamos totalmente cada pedaço de comida, pelo menos 30 vezes, para que possamos estar verdadeiramente em contato com ela. É muito bom para a digestão comer dessa maneira.

 

Antes de cada refeição, um monge ou uma monja recita as Cinco Contemplações: "Este alimento é presente de todo Universo, ele veio da terra, do céu, de numerosos seres vivos e de muito trabalho árduo. Que possamos comê-lo em plena consciência e com gratidão a fim de sermos dignos de recebê-lo. Que possamos reconhecer e transformar nossas formações mentais não saudáveis, principalmente nossa ganância, e aprendermos a comer com moderação. Que possamos manter nossa compaixão viva através de uma alimentação que alivie o sofrimento dos seres vivos, preserve nosso planeta e reverta o processo de aquecimento global. Aceitamos este alimento para que possamos nutrir e fortalecer nossa Sangha e cultivar nosso ideal de servir a todos os seres. " (*)

 

Podemos então ver profundamente a comida, de uma forma que permita que ela se torne real. Contemplar nosso alimento antes de ingeri-lo conservando a mente alerta pode ser uma verdadeira fonte de felicidade. Sempre que tenho nas mãos uma tigela de arroz, reconheço que sou muito afortunado. Sei que 40 mil crianças morrem todos os dias por falta de comida e que muitas pessoas estão solitárias, sem amigos ou família. Visualizo-os e sinto uma profunda compaixão.

 

Não precisamos estar num mosteiro para realizar essa prática. Podemos praticar em casa na hora das refeições. Comer com a mente alerta é um modo maravilhoso de nutrir a compaixão e nos encoraja a fazer alguma coisa para ajudar os que estão famintos e solitários. Não precisamos ter receio de comer sem ter a televisão, o rádio, o jornal ou uma conversa complicada para nos distrair. Com efeito, é maravilhoso e alegre estarmos completamente presentes com nossa comida.

 

Na tradição judaica, a qualidade sagrada da hora da refeição é extremamente enfatizada. As pessoas cozinham, põem a mesa e comem na presença de Deus. "Devoção" é uma palavra importante no judaísmo, porque toda a vida é um reflexo de Deus, a fonte infinita da santidade. O mundo inteiro, todas as coisas boas na vida, pertencem a Deus, de modo que, quando apreciamos alguma coisa, pensamos em Deus e a desfrutamos na presença Dele. Este conceito é muito parecido com a apreciação budista da interexistência e da interpenetração.

 

Quando despertamos, temos consciência de que Deus criou o mundo. Quando vemos os raios da luz do sol entrando através da janela, reconhecemos a presença de Deus. Quando nos levantamos e nosso pé toca o chão, sabemos que a terra pertence a Deus. A devoção é o reconhecimento de que tudo está ligado à presença de Deus em cada momento. O Seder da Páscoa, por exemplo, é uma refeição ritual que celebra a libertação dos israelitas da escravidão no Egito e sua jornada de volta ao lar. Durante a refeição, certos legumes, verduras e ervas, o sal e outros condimentos nos ajudam a entrar em contato com o que aconteceu no passado - com o que foi nosso sofrimento e o que foi nossa esperança. Trata-se de uma prática de alertar a mente.

 

O cristianismo é uma continuação do judaísmo, bem como o islamismo. Todos os ramos pertencem à mesma árvore. No cristianismo, quando celebramos a eucaristia, partilhando o pão e o vinho como o corpo de Deus, nós o fazemos no mesmo espírito de devoção, com a mente alerta, sabendo que estamos vivos, apreciando viver no momento presente. A mensagem de Jesus durante o Seder que se tornou conhecido como a Última Ceia foi bem clara. Seus discípulos o vinham acompanhando. Haviam tido a oportunidade de olhar nos olhos Dele e vê-lo em pessoa, mas parece que ainda não haviam entrado realmente em contato com a maravilhosa realidade do ser dele. Por conseguinte, quando Jesus partiu o pão e serviu o vinho, ele disse: "Este é Meu Corpo. Este é Meu Sangue. Bebam e comam deles e encontrarão a vida eterna." Foi uma maneira drástica de despertar Seus discípulos da negligência.

 

Quando olhamos à nossa volta, vemos muitas pessoas em quem o Espírito Santo não parece habitar. Elas parecem mortas, como se estivessem arrastando um cadáver, seu próprio corpo.  A prática da eucaristia Visa ajudar a ressuscitar essas pessoas para que possam tocar o Reino da Vida. Na igreja, a eucaristia, ou comunhão, é recebida sempre que é celebrada uma missa.

 

Representantes da Igreja lêem a passagem bíblica a respeito da Última Ceia de Jesus com Seus doze discípulos, e um tipo especial de pão, a Hóstia, é partilhado. Todos participam como uma forma de receber a vida de Cristo no corpo. Quando o padre executa o ritual da eucaristia, seu papel é levar a vida à comunidade. O milagre acontece não porque ele pronuncie corretamente as palavras, mas porque comemos e bebemos com a mente alerta. A Sagrada Comunhão é um poderoso sino para alertar a mente.

 

Bebemos e comemos o tempo todo, mas geralmente só ingerimos nossas idéias, projetos, preocupações e ansiedade. Não comemos realmente nosso pão nem bebemos nossa bebida. Se nos permitirmos tocar profundamente nosso pão, renasceremos, porque nosso pão é a própria vida. Ao comê-lo profundamente, tocamos o sol, as nuvens, a terra e tudo no universo. Entramos em contato com a vida e com o Reino de Deus. Quando perguntei ao cardeal Jean Daniélou se era possível descrever a eucaristia dessa maneira, ele respondeu que sim.

 

É irônico que quando o padre celebra a missa hoje em dia, muitos membros da congregação não tenham a mente alertada. Eles já ouviram tantas vezes as mesmas palavras, que ficam um pouco distraídos. É exatamente isso que Jesus estava tentando superar quando disse: "Este é Meu Corpo. Este é Meu Sangue." Quando vivemos verdadeira e profundamente no momento presente, podemos perceber que o pão e o vinho são realmente o Corpo e o Sangue de Cristo e que as palavras do padre são realmente as palavras do Senhor. O corpo de Cristo é o corpo de Deus, o corpo da suprema realidade, a causa de toda a existência. Não temos de procurá-lo em nenhum outro lugar. Ele reside nas profundezas do nosso ser. O rito eucarístico nos estimula a ficar completamente conscientes para que possamos tocar o corpo da realidade dentro de nós. O pão e o vinho não são símbolos. Eles encerram a realidade, assim como nós a encerramos.

 

Quando budistas e cristãos se reúnem, devemos partilhar uma refeição com a mente alerta como uma prática profunda de comunhão. Quando pegamos um pedaço de pão, podemos fazê-lo com a mente alerta, com Espírito. O pão, a Hóstia, torna-se objeto da nossa concentração e amor profundos. Se nossa concentração não for suficientemente intensa, podemos tentar pronunciar silenciosamente a palavra "Pão", da maneira como diríamos o nome do ser amado. Quando fazemos isso, o pão se revela a nós em sua totalidade, e podemos colocá-lo na boca e mastigá-lo com plena consciência, sem mastigar mais nada, como nossos pensamentos, nossos temores ou mesmo nossas aspirações. Esta é a Sagrada Comunhão viver com fé. Quando praticamos dessa maneira, cada refeição torna-se a Última Ceia. Com efeito, poderíamos chamá-la de a Primeira Ceia, porque tudo o mais será novo e revigorante.

 

Quando comemos juntos dessa maneira, a comida e a comunidade de pessoas que praticam em conjunto são o objeto da nossa prática de alertar a mente. É através do alimento e da convivência que o supremo torna-se presente. Comer um pedaço de pão ou uma tigela de arroz com a mente alerta e perceber que cada bocado é uma dádiva do universo é viver profundamente. Não precisamos distrair-nos da comida, nem mesmo para prestar atenção às escrituras ou à vida dos bodhisattvas ou dos santos. Quando a mente está alerta, o Buda e o Espírito Santo já estão presentes.

 

(*) O texto das Cinco Contemplações passou a ter uma nova versão desde 2008 e esta é a tradução oficial das Sanghas brasileiras.

 

(Do livro “Vivendo Buda, Vivendo Cristo” – Thich Nhat Hanh)

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