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 Estudos Budistas

Tradição do Ven. Thich Nhat Hanh

 

Quarto mantra

 

O Quarto Mantra é difícil porque você sofre, e não a outra pessoa. Você sofre e acredita que seu sofrimento foi causado por ele ou por ela. Se fosse outra pessoa que fizesse isso com você, você teria sofrido menos. Mas não é outra pessoa é ele, é ela, é a pessoa que você mais ama que te fez isso. Se fosse outra pessoa que te dissesse isso, não seria tão doloroso assim. Mas como é a pessoa que você ama, que você confia ao máximo que lhe disse isso, você sofre profundamente. Você se sente muito sozinho e prefere ir para o seu quarto se trancar e chorar. Você se machucou tanto que mesmo se a outra pessoa vem e pergunta sobre o seu mal-estar, você não quer responder. Você quer dizer indiretamente que não precisa dele, que não precisa mais dela. Você pode sobreviver muito bem sem ele ou ela.

 

Isso é bobagem, mas muitos de nós fazemos assim. Isso é orgulho, o elemento de orgulho no amor. Isso é o oposto de interser, do insight de interser. Você se magoa quando a outra pessoa pergunta: “Querida, você sofre por alguma coisa?” E você diz: “Eu sofro? Por que eu tenho que sofrer?”  Você finge não sofrer. Se ele quiser colocar a mão no seu ombro, você diz: “Deixe-me em paz!” Você faz tudo para dizer indiretamente que não precisa dele, que não precisa dela. Sozinho você pode sobreviver muito bem.  Isso é um tipo de punição, você quer punir.

 

Isso não é amar, porque no amor você tem que compartilhar tudo. O seu sofrimento é o sofrimento dele, a sua felicidade é a felicidade dela, mas você acha muito difícil ir até ele e pedir ajuda. Mas a verdadeira prática é dizer a ele, dizer a ela que você sofre.

 

Há uma história real e verdadeira que aconteceu no Vietnã no final do século XV. Havia uma senhora que estava grávida, a senhora Nam Xuong. Seu marido teve que ir para a guerra, para o exército. Ambos eram jovens e eles choraram muito quando o jovem saiu. Ela teve que dar à luz e criar seu filho sozinha. Ele esteve no exército por três anos e teve a sorte de ser voltar vivo. Então ele foi para casa e ela soube das boas novas ao se dirigir ao portão da aldeia com o menino. Aquele foi um momento muito feliz quando eles se encontraram novamente depois de três anos. Foi a primeira vez que o jovem pai viu seu filho.

 

De acordo com nossa tradição você deve anunciar as boas novas aos seus ancestrais. No Vietnã há a prática de adoração ancestral. Cada casa tem um altar para os ancestrais e todas as manhãs você tem que vir ao altar, tirar a poeira e acender um bastão de incenso e oferecer. Leva um ou dois minutos, mas para nós é uma prática muito importante porque acreditamos que nossos ancestrais estão sempre vivos, pelo menos dentro de nós. Aonde quer que vamos, nossos ancestrais vão conosco, não fora, mas dentro de nós.

 

O minuto que você gasta para estar com seus ancestrais, para acender um bastão de incenso, é o momento em que você se conecta com seus ancestrais. é muito importante. Quando algo importante acontece na família, você tem que anunciar formalmente aos seus ancestrais. Suponha que nasça um bebê. Você tem que oferecer, colocar no altar uma oferenda e anunciar o nascimento do bebê, porque seus ancestrais têm o direito de saber. Se você está mandando seu filho para a escola, da próxima vez terá que fazer uma oferenda, colocá-la no altar e anunciar aos seus ancestrais. Se sua filha está prestes a se casar, você deve anunciar isso aos seus ancestrais. Essa é a prática de todos.

 

A senhora foi fazer algumas compras, a fim de preparar uma oferenda. O homem ficou e tentava persuadir o filho a chamá-lo de papai, mas o filho recusava. “Senhor, você não é meu pai, Meu pai vinha todas as noites e minha mãe conversava longamente com ele e chorava. Sempre que minha mãe se sentava, meu pai se sentava e quando minha mãe se deitava, ele se deitava”. Quando o jovem pai ouviu isso, sofreu muito. Ele acreditava que havia outro homem que, em sua ausência, havia se intrometido em sua casa, na sua família. Então seu coração se tornou um bloco de gelo. Ele foi para casa sem falar nada com o menino.

 

Na verdade, não havia ninguém vindo todas as noites. Um dia o menino chegou tarde em casa, estava brincando com as crianças do povoado e disse: “Mãe, todo mundo tem pai. Cadê meu papai? Eu quero ter um pai”. Ela estava acendendo a lamparina de querosene e apontou para a própria sombra na parede e disse: “Este é o seu papai. Por que você não diz boa noite para ele? Faça assim. Boa noite papai!”. Essa é a verdade que aconteceu. Ela passava o tempo falando com sua própria sombra, ela estava tão solitária! Ela conversava com a sombra: “Meu querido marido, você está longe há muito tempo. Como eu posso ficar sozinha e criar nosso filho?” Claro que quando ela se senta, a sombra se senta. Essa é a verdade.

 

Mas o jovem tem uma percepção equivocada de que alguém se intrometeu na casa e é por isso que quando a senhora voltou para casa ele não olhou mais para ela.  Ele não respondeu mais as suas perguntas. Estava muito frio e ela começou a sofrer. Ela não entendeu o que tinha contecido.

 

Quando a oferenda foi colocada no altar, ele estendeu uma esteira e ofereceu incensos e tocou a terra quatro vezes de acordo com a tradição. Depois ele enrolou a esteira e não permitiu que a jovem fizesse o mesmo, pensando que ela não era digna de se apresentar diante do altar porque ela havia cometido adultério. Ela ficou muito humilhada. Em vez de compartilhar a refeição, ele saiu, foi para o bar e tentou esquecer seu sofrimento bebendo. Só voltou para casa às duas horas, três horas da manhã, e continuou fazendo assim várias vezes. A senhora sofreu tanto que não aguentou mais e se jogou no rio próximo.

 

Quando soube da morte de sua esposa, ele voltou para casa e cuidou da criança. Naquela noite quando ele acendeu a lamparina de querosene o menino disse: “Senhor, este é meu papai”, e ele apontou para a sombra de seu pai. “Ele vem todas as noites.” Agora o jovem pai sabia da verdade, mas era tarde demais. Ele foi vítima de uma percepção errada, era tarde demais. No dia seguinte todos na aldeia souberam da tragédia. Vieram e ajudaram o jovem a organizar uma cerimônia de três dias para orar pela libertação da alma da jovem.

 

O rei Li Tantam, que era poeta, um dia passou e viu um santuário construído perto do rio. Ele perguntou o que era e as pessoas da aldeia contaram ao rei sobre a história, a tragédia. Ele ficou tão comovido que escreveu um poema que foi gravado em um bloco de pedra. Esse poema ainda existe. Uma tragédia aconteceu porque o Sr. Tung, esse era o nome dele e senhora Nam Xuong, não sabiam como praticar o quarto mantra.

 

O quarto mantra é assim: “Querido, eu sofro, querida, eu sofro por favor me ajude. Por favor, explique por que você fez tal coisa comigo. Por que você disse uma coisa dessas para mim? Eu sofro, por favor me ajude!” Se o Sr. Tung tivesse feito isso a senhora Nam Xuong teria tempo para explicar e os dois teriam sido capazes de evitar uma tragédia.

 

Ela se comportou assim também. Ela estava magoada e havia orgulho nela. Se ela tivesse ido até ele e dito “Querido, meu marido eu sofro tanto e não entendo por que desde que eu voltei do mercado você não olhou mais para mim. Você não respondeu mais minhas perguntas.  Eu fiz algo horrível para você me tratar assim? Por favor me ajude, explique.” Se ela tivesse feito isso, o Sr. Tung teria dito a ela: “O menino disse que alguém costumava vir todas as noites. Quem é ele? Eu sofro tanto! Por favor, explique.”  Então haveria uma explicação e não haveria nenhuma tragédia.

 

Embora seja um pouco difícil de praticar, o quarto mantra é muito essencial para evitar tragédias. Da próxima vez que você sofrer e acreditar que seu sofrimento foi causado por ela, a pessoa que você mais ama, não faça como o Sr. Tung, não faça como a Sra. Nam Xuong, não deixe o orgulho ficar no seu caminho. Vá até ele, vá até ela e peça ajuda.

 

Em Plum Village, aconselhamos nossos amigos a pegarem um pedaço de papel do tamanho de um cartão de crédito e anotar as três frases. A primeira frase é: “Querida eu sofro e eu quero que você saiba que eu sofro”. Você não finge que não sofre. Você sofre e você diz que sofre porque no começo vocês se comprometeram juntos a compartilhar tudo, sofrimento e felicidade. Então isso é algo natural, você sofre, você diz a ele que sofre, diz a ela que sofre.

 

A segunda frase é “Estou fazendo o meu melhor porque sou um praticante da atenção plena. Estou praticando a respiração consciente, a caminhada consciente e olho profundamente em meu sofrimento para ver se veio de uma percepção errada ou não, porque eu posso muito bem ser vítima de uma percepção errada. Talvez você não tenha pretendido me fazer sofrer, mas eu tenho algumas percepções erradas. Estou fazendo o meu melhor para olhar profundamente em meu sofrimento.” Essa segunda frase é uma espécie de convite indireto para a outra pessoa praticar: “O que eu fiz, o que eu disse para fazê-lo ou fazê-la sofrer tanto?”  Aquela pessoa começa a refletir, a pensar. Esse é o propósito.

 

A última frase é: “Por favor ajude”. Você pode colocar esse pedaço de papel em sua carteira. É o Dharma em sua carteira, o Buda e sua carteira. Toda vez que você sofrer e acreditar que seu sofrimento foi causado por ele por ela, a pessoa que você mais ama, tire o cartão e você saberá exatamente o que fazer.

 

(Palestra de Dharma de Thich Nhat Hanh em Plum Village em 14 de outubro de 2013 – transcrito do vídeo do YouTube (https://youtu.be/Ivs0FuaZooM)

Traduzido por Leonardo Dobbin)

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