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 Estudos Budistas

Tradição do Ven. Thich Nhat Hanh

 

Reconhecendo as causas do sofrimento (parte 2)        

 

Depois de estudar, refletir e praticar a Primeira Nobre Verdade, entendemos que finalmente vamos parar de fugir da dor. Agora já podemos dar ao nosso sofrimento um nome especifico, e identificar suas características próprias. Isso já nos proporciona alguma felicidade e alegria, desta vez sem "dificuldades" (anashrava).

 

Mesmo assim, depois de diagnosticar a nossa doença ainda continuamos por algum tempo a gerar sofrimento. Lançamos gasolina ao fogo através de palavras, pensamentos e atos, muitas vezes sem perceber. O primeiro giro da roda da Segunda Nobre Verdade é o Reconhecimento: Eu continuo a criar sofrimento. O Buda disse: "Quando algo passa a existir, temos que reconhecer sua presença e observar com profundidade a sua natureza. Quando contemplamos, descobrimos os tipos de nutrientes que contribuíram para produzir sofrimento no passado, e que ainda hoje continuam a alimentá-lo." A seguir ele enunciou os quatro tipos de nutrientes capazes de nos conduzir a felicidade ou ao sofrimento: alimento, impressões sensoriais, intenção e consciência.

 

(...)O terceiro tipo de nutriente é a volição, intenção, ou vontade – O desejo que existe em nós de obter aquilo que queremos. A volição é o fundamento de todas as nossas ações. Se achamos que a forma de sermos felizes é nos tornarmos presidentes de uma multinacional, tudo o que dizemos ou fazemos será direcionado para este fim. Mesmo quando dormimos, nossa consciência vai continuar trabalhando nisto. Por exemplo, suponha que acreditamos que todo o nosso sofrimento, bem como o sofrimento de nossa família, foi causado por alguém que nos prejudicou no passado. Acreditamos que só seremos felizes se infligirmos algum mal a esta pessoa. Nossa vida e motivada somente pelo desejo de vingança, e tudo o que dizemos e planejamos visa punir esta pessoa. A noite, sonhamos com vingança, e achamos que isto vai nos liberar de nossa raiva e de nosso ódio.

 

Todos querem ser felizes, e há uma irresistível energia nos empurrando na direção daquilo que acreditamos que nos fará felizes. Mas isso pode gerar grande sofrimento. Precisamos ter clareza que posição social, vingança, riqueza, fama ou posses frequentemente são poderosos obstáculos à nossa felicidade. Devemos cultivar o desejo de nos liberarmos de tudo isso, para usufruirmos as maravilhas da vida que estão sempre ao alcance de todos - o céu azul, as árvores, nossos lindos filhos. Depois de três ou seis meses de meditação usando a atenção plena, caminhadas com atenção plena e olhar para tudo que nos cerca com atenção plena, começa a surgir dentro de nos uma visão mais profunda das coisas, e com isso a capacidade de estar presente ao momento, desfrutando a vida no momento presente. Este processo nos libera dos impulsos passageiros e produz a verdadeira felicidade.

 

Um dia, depois que o Buda e um grupo de monges haviam terminado de almoçar em comunidade, com a atenção plena, um fazendeiro muito agitado se acercou e perguntou: "Monges, vocês viram as minhas vacas? Acho que não vou sobreviver a tão má sorte." O Buda perguntou: "O que aconteceu?" e o homem disse: "Monges, esta manhã todas as minhas doze vacas fugiram. E neste ano todas as minhas plantas de gergelim foram atacadas por insetos!" O Buda disse: "Senhor, nos não vimos as suas vacas. Talvez tenham ido em outra direção."

 

Depois que o fazendeiro seguiu na direção indicada, o Buda se voltou para a Sangha e disse: "Queridos amigos, sabem que vocês são as pessoas mais felizes da Terra? Vocês não têm vacas para perder." Nós sempre tentamos acumular mais e mais coisas, e achamos que nossas "vacas" são essenciais a existência. Na verdade, talvez elas sejam exatamente os obstáculos que nos impedem de sermos felizes. Soltem suas vacas e tornem-se livres. Soltem suas vacas e sejam realmente felizes.

 

O Buda nos ofereceu ainda uma outra imagem: "Dois homens fortes estão arrastando um terceiro homem para jogá-lo no fogo. Ele não consegue resistir, e finalmente eles o lançam sobre os carvões em brasa." Esses homens fortes, disse o Buda, são a nossa vontade. Nós não queremos sofrer, mas a força arraigada de nossos hábitos nos arrasta para o fogo do sofrimento. O Buda nos aconselha a contemplar profundamente a natureza da nossa vontade, para ver se ela está nos arrastando em direção a liberação, paz e compaixão ou em direção ao sofrimento e ao desespero.

 

O quarto tipo de nutriente é a consciência. Nossa consciência é composta por todas as sementes plantadas em nossas ações passadas, e também pelas ações passadas de nossa família e nossa sociedade. Todos os dias, nossos pensamentos, palavras e ações fluem para o mar de nossa consciência, criando nosso corpo, nossa mente e nosso mundo.

 

Podemos nutrir a consciência praticando os Quatro Imensuráveis Pensamentos, amor, compaixão, alegria e equanimidade ou podemos nos alimentar com ganância, ódio, ignorância, suspeita e orgulho. Nossa consciência se alimenta o tempo todo, dia e noite, e o que ela consome se torna a substância de nossa vida. Temos que ser muito cuidadosos ao escolher que nutrientes vamos ingerir.

 

Para ilustrar isso, mais uma imagem dramática foi descrita pelo Buda: "Um assassino perigoso foi capturado e trazido diante do rei, e o rei o sentenciou a morte por esfaqueamento. 'Levem-no para o pátio e apunhalem seu corpo com trezentas facas afiadas.' Ao meio-dia, o guarda voltou e fez o relatório: 'Majestade, ele ainda vive', eo rei ordenou: 'Dêem-lhe mais trezentas facadas.' A noite, o guarda retomou diante do rei: 'Majestade, de ainda não esta morto.' Então o rei deu a terceira ordem: 'Transpassem seu corpo com as trezentas laminas mais afiadas do reino.' Então o Buda disse: 'Esta e a forma pela qual costumamos lidar com nossa consciência." Cada vez que colocamos toxinas na consciência, e como apunhalar a nos mesmos com trezentas armas afiadas.

 

Sofremos, e nosso sofrimento atinge todos os que estão ao nosso redor. Quando praticamos o primeiro giro da Primeira Nobre Verdade, reconhecemos o sofrimento como sendo sofrimento. Se temos um relacionamento difícil, reconhecemos que "este relacionamento e muito difícil". Nessa altura, nossa pratica consiste em dois pontos: estarmos presentes ao nosso sofrimento e ter carinho e atenção para com de. Ao praticar o primeiro giro da Segunda Nobre Verdade, observamos a natureza do sofrimento para ver que tipo de alimentos lhe temos oferecido. O que fizemos em nossa forma de viver nos últimos anos ou meses que contribuiu para este sofrimento? Precisamos reconhecer e identificar aquilo que ingerimos, e perceber: "Quando eu penso desta forma, falo desta forma, escuto desta forma ou ajo desta forma, meu sofrimento aumenta."

 

Ate começarmos a praticar a Segunda Nobre Verdade, tendemos a culpar os outros por nossos problemas. Examinar uma coisa profundamente e algo que requer coragem. Podemos usar lápis e papel, se quisermos. Durante a meditação sentada, quando observamos um sintoma claro de sofrimento, podemos anotá-lo, E a seguir nos perguntamos: "Que tipo de nutrientes eu venho ingerindo que tem alimentado e sustentado esta dor?" Quando se começa a entender os tipos de alimentos que ingerimos, dá vontade de chorar.

 

Use a energia da atenção plena durante todo o tempo, para conseguir permanecer presente e abraçar seu sofrimento da mesma forma que uma mãe abraça o filho. Enquanto a atenção plena estiver presente, conseguiremos ter consciência de nossas dificuldades. Praticar não significa usar apenas nossa própria atenção, plena concentração e sabedoria. Também e preciso se beneficiar da atenção plena, da concentração e da sabedoria dos companheiros da sangha e do mestre.

 

Existem coisas que até uma criança pode ver, mas que não enxergamos porque somos prisioneiros de nossas idéias fixas. Mostre a um amigo aquilo que escreveu, e peça as suas observações. Se você conversar abertamente com um amigo, com a firme intenção de descobrir as raízes do sofrimento, eventualmente será capaz de discerni-las com clareza. Mas se mantiver seu sofrimento em segredo, ele crescerá a cada dia. O simples fato de enxergar suas causas faz o peso diminuir.

 

Shariputra, um dos grandes discípulos do Buda, disse: "Quando alguma coisa acontece, se olharmos profundamente para a realidade, enxergando as causas do fato ocorrido e identificando o alimento que o nutriu, já estamos no caminho da liberação.' Quando conseguimos identificar o sofrimento e suas causas, temos mais paz e mais alegria, e já estamos trilhando a senda da libertação.

 

No segundo estagio da Segunda Nobre Verdade, "Encorajamento", enxergamos com clareza que a felicidade e possível, se conseguirmos parar de ingerir nutrientes que provocam sofrimento. Se já sabemos que nosso corpo sofre por causa da forma que comemos, dormimos ou trabalhamos, tomaremos a decisão de comer, dormir ou trabalhar de uma forma mais saudável. Devemos incentivar o fim do sofrimento. Só conseguiremos manter a roda em movimento através da firme intenção de fazer as coisas de outra forma. A atenção plena é uma energia capaz de nos ser de grande ajuda.

 

(Do livro “A Essência dos ensinamentos de Buda”– Thich Nhat Hanh)

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