Sangha
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Estudos Budistas
Tradição
do Ven. Thich Nhat Hanh
Renascimento reencarnação ou continuação?
Nas tradições religiosas, tendemos a acreditar mais em algo duradouro, como a alma. Sabemos que, no Budismo, a noção de alma não existe. Pode chamar de consciência, pode imaginar, pode identificar a consciência com a alma, pode até chamar a consciência de sua alma, com a condição de saber que a sua natureza é apenas uma natureza cinematográfica.
A sua consciência é feita de manifestações instantâneas, como flashes e se você compreender isso, é livre para usar qualquer palavra, incluindo alma. Mas se usar a palavra consciência e a entender como algo duradouro, mesmo a palavra consciência está errada.
A consciência, tal como o objeto da consciência, manifesta-se de uma forma que se assemelha ao cinema. As pessoas na física quântica começam a perceber isso com clareza. Assim, quando tendemos a acreditar que a consciência é permanente, que a alma é permanente, e que apenas o corpo perece, e que a alma continua assim por muito tempo— para ir para o céu ou para o inferno— isso é a crença no eternalismo, a visão da permanência, que é uma visão errada.
O Budismo propõe a impermanência. E a impermanência combina bem com a ciência, porque a ciência também reconhece que tudo é impermanente, que tudo existe apenas num instante fugaz. Isto aplica-se não só à consciência, mas ao mundo, que é objeto da consciência. No Budismo elementar, aprendemos que Dharma, com "D" maiúsculo, é o ensinamento de Buda, mas dharma, com "d" minúsculo, significa objeto da mente, ou o que é cognoscível.
Assim, sabemos que o mundo é, primeiramente, objeto da mente. Isso é algo de que podemos ter certeza. Se o mundo existe por si só, não podemos ter certeza, mas podemos ter certeza de que é objeto da nossa mente. O sol, a lua, a Terra, o cosmos, as galáxias—são todos objetos da mente. O nosso corpo também é objeto da nossa mente e a nossa mente também é objeto da nossa mente.
Portanto, existe a possibilidade de investigar o objeto da nossa mente, e, quando compreendemos o objeto da nossa mente, compreendemos a nossa mente, porque a mente e o objeto da mente interexistem, um não pode existir sem o outro. Assim, uma Visão Correta deve transcender a visão do eternalismo. Uma alma permanente e imortal é algo que não pode ser aceita, nem por bons budistas, nem por bons cientistas.
Mas a visão oposta, de que, após a desintegração do corpo, desaparecemos por completo, é outra visão extrema. Essa é outra visão errada chamada aniquilação ou niilismo. Portanto, este são dois extremos. Ambas são visões erradas. Dizer que você desaparece completamente com o seu corpo é uma visão errada.
Assim, como estudante do Budismo, você não fica preso a nenhuma das duas visões. O renascimento, a continuação, devem ser compreendidos à luz de "nem eternalismo, nem niilismo". Assim, o Budismo popular, o Budismo devocional, pode adotar uma abordagem mais eternalista. Eles pensam que, após a desintegração do corpo, a alma permanece a mesma e penetrará em outro corpo— um animal, uma árvore, um esquilo, um veado ou outra pessoa. Essa pessoa pode ser branca, pode ser negra, pode ser morena, e assim por diante. Então, isso é ingênuo se olharmos do ponto de vista da Visão Correta.
Dizer que, após a morte, continuamos a mesma pessoa em diferentes formas de vida, isso não é um Budismo profundo, e não é científico. Porque com a impermanência, tudo está sempre mudando. A natureza cinematográfica do corpo e da mente não permite esse tipo de pensamento.
Portanto, não é nem budista nem científico. Mas muitos cientistas ficam presos a essa visão e não são bons cientistas. Porque bons cientistas veem que nada pode desaparecer—nada nasce, nada morre— há apenas uma manifestação contínua em diferentes tipos de formas.
Isso é uma espécie de renascimento, uma espécie de samsara, uma espécie de continuação, mas à luz da impermanência e da ausência de eu. Muitos cientistas são capazes de ver isso. Assim, a aniquilação não é nem budista nem científica e um bom estudante de budismo pode transcender essas duas visões erradas. a noção de renascimento, a noção de continuação. Ficar livre dessas duas visões, caso contrário, não é muito budista, não é muito científico.
Suponha que você seja uma nuvem—e isso é usar uma imagem para meditação. Você é feito de pequenos cristais de gelo ou de água. Você é tão leve, que não cai. Você pode flutuar. Há nuvens gigantes, milhões de toneladas de água flutuando assim. Há interação, colisão entre esses pequenos cristais de gelo. Eles podem se tornar um grande pedaço de gelo e cair como uma grande gota de água, como chuva.
Mas talvez, no meio do caminho, você encontre um bloco de ar quente, então você se evapora novamente e sobe novamente, você desce, sobe novamente, desce, sobe—então transmigração, reencarnação, renascimento, acontecem sempre na nuvem. Uma nuvem não precisa se tornar chuva para ter uma nova vida. Uma nuvem tem uma nova vida a cada momento.
O renascimento, a continuação, ocorre conosco da mesma maneira. Porque a cada momento produzimos pensamento, produzimos fala, e produzimos ação. E essa ação terá um efeito em nós e no mundo. Isso é o nosso produto, o nosso karma, a nossa ação. Karma é um termo muito importante. Então, olhe para essa nuvem, e se você pensar que essa nuvem apenas flutua e é a mesma nuvem, isso não é verdade.
Uma nuvem é muito ativa. Há muitas atividades numa nuvem. Uma nuvem pode produzir uma energia muito poderosa. Luz elétrica produzida pela nuvem pode destruir muitas coisas e ir muito rápido. O calor criado por uma nuvem é mais quente que o calor do sol. Não entendemos o suficiente sobre as nuvens. Temos que aprender mais sobre as nuvens. As nuvens são impermanentes, uma nuvem é muito ativa. O nascimento e a morte, continuação, nascimento e renascimento, continuam sempre a cada momento na nuvem.
Isso será útil, porque somos como uma nuvem. Na verdade, há muita nuvem em nós. Continuamos a beber nuvem todos os dias. Então, nascimento e morte acontecem em cada momento da nossa vida diária. Não devemos dizer "Eu vou morrer em vinte anos ou trinta anos," não, você está morrendo neste momento e você está renascendo neste momento.
Portanto, o renascimento é algo que está acontecendo aqui e agora, e não no futuro. Então, quando alguém te perguntar, "O que acontece comigo quando eu morrer?" talvez você possa ajudar essa pessoa fazendo uma pergunta de volta: "O que acontece comigo aqui e agora?" E se souber o que acontece com você aqui e agora, poderá responder facilmente à outra pergunta. Está passando por nascimento e morte agora. O renascimento está acontecendo neste momento.
Porque, mental e fisicamente, você é de uma natureza cinematográfica, e renasce a cada instante, renovando-se a cada instante para ser uma nova pessoa, um novo ser. E se souber como fazer isso, a sua renovação será bela. Com o karma, você pode assegurar uma continuação bela, uma melhor continuação. Se souber como lidar com o seu pensamento, com sua fala e sua ação, será mais belo. E isso é possível. Isso é ação, isso é karma.
Portanto, o fato é que você não precisa esperar até morrer para ver o que acontece com você. Olhe no momento presente, e verá que o nascimento e a morte estão acontecendo em você a cada momento, tanto no seu corpo como na sua consciência. E se realmente souber o que está acontecendo no momento presente, a outra questão será respondida muito facilmente, é o mesmo tipo de resposta.
A cada momento da nossa vida diária, há entrada, há saída. Você respira, se alimenta, tem novas ideias, novos sentimentos, e o velho... há saída também. Há coisas que saem de você, do seu corpo: urina, ar, água, e assim o cosmos está a passar por você, te renovando, e você está devolvendo outras coisas ao cosmos. Está se renovando a cada momento. Portanto, o nascimento e a morte não esperam, estão acontecendo agora, no momento presente.
Suponhamos que uma parte da nuvem é capaz de se transformar em chuva e cair, tornando-se parte do rio. E o resto da nuvem estava olhando de cima no céu e via a sua continuação aqui na Terra. Pode acenar, "Tenha uma boa viagem lá embaixo. Eu gosto daqui em cima, mas você, parte de mim, espero que aproveite aí embaixo." Flutuar aqui em cima é agradável, mas estar fluindo lá embaixo também é agradável. Então você está tanto lá em cima como embaixo. Essa é a nossa nuvem.
Como seres humanos, podemos ver isso também. Posso me ver em meus estudantes e meus amigos. Desejo-lhes boa sorte, porque a sua boa sorte é a minha boa sorte. Os meus discípulos e meus amigos me levam com eles, e lhes desejo o melhor. A minha felicidade e sofrimento dependem deles, eu continuo. Então, quando olho, não vejo apenas a mim aqui. me vejo lá. Então, aceno, "Tenham uma boa estadia lá, aproveitem!"
Essa é a maneira de olhar. Se veja não apenas neste corpo, porque isso é uma visão errada. Se veja em todos os lugares, porque a cada momento você produz pensamento, produz fala, produz ação que continua no mundo. Você está lá, e não apenas aqui.
Outro dia, um amigo da Tailândia me perguntou, "Thay, o que acontecerá quando você morrer?" Eu disse "Eu não morrerei. Eu continuarei com os meus amigos e os meus alunos. Estarei presente durante muito tempo. Quero aproveitar a viagem e estar por aí. Então, daqui a 100 anos, quando você vier a Plum Village, ainda me verá em diferentes formas, e mais jovem, mais belo.”
Porque é possível ser mais belo, na nossa forma de pensar, na nossa forma de falar e agir, se soubermos como gerar a Visão Correta. Com a Visão Correta não sofremos. Podemos produzir pensamentos de compaixão, compreensão, perdão, e sentirmos leveza dentro de nós. Assim curamos o mundo. Portanto, é possível continuar na beleza. Assim, uma nuvem pode fazer o trabalho de autopurificação lá em cima, para que, quando se tornar neve ou rio, seja bela. É possível.
(Palestra de Dharma de Thich Nhat Hanh em 21 de junho de 2009 – transcrito do vídeo do YouTube
https://youtu.be/6WOt-uEMNT8)
Traduzido por Leonardo Dobbin)
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