Sangha Virtual

 Estudos Budistas

Tradição do Ven. Thich Nhat Hanh

 

Sem medo

 

Quando o desejo cessa, não há mais medo. Somos então verdadeiramente livres, pacíficos e felizes. Quando o praticante não tem mais desejo, nem formações internas, ele se libertou do abismo. – Sutra: Na rede do amor sensual, versículo 30

 

 

A maioria de nós anda por aí com medo da separação de nossos entes queridos, com medo da solidão e com medo da inexistência. Nosso maior medo é que, quando morrermos, nos tornemos nada. Muitos de nós acreditamos que toda a nossa existência é apenas um único período de vida desde o momento em que nascemos até o momento em que morremos. Acreditamos que nascemos do nada e quando morremos nos tornamos nada.

 

Ficamos cheios de medo da aniquilação. Mas a aniquilação é apenas uma noção. Buda ensinou que não existe nascimento; não há morte; não há vinda; não há ida; não há o mesmo; não há diferente; não existe um eu permanente. Se praticarmos meditação, podemos gerar as energias de plena atenção e concentração. Essas energias nos levarão ao insight de que não existe nascimento nem morte. Podemos realmente remover nosso medo da morte. Quando entendemos que não podemos ser destruídos, ficamos livres do medo. É um grande alívio. O não-medo é a alegria suprema.

 

Se você tem medo, não pode ter felicidade. Se você ainda está correndo atrás do objeto de seu desejo, então ainda tem medo. O medo vem junto com o desejo. Se você parar o desejo, o medo irá embora naturalmente.

 

Às vezes você fica com medo, mas não sabe por quê. O Buda diz que a razão de você estar com medo é porque você ainda tem desejo. Se você parar de correr atrás do objeto de seu desejo, não terá medo. Não tendo medo, você pode ficar em paz. Com paz em seu corpo e mente, você não se preocupa e tem menos acidentes. Você é livre.

 

Um dos maiores presentes que podemos oferecer a outras pessoas é incorporar o não-medo e o desapego. Este verdadeiro ensinamento é mais precioso do que dinheiro ou recursos materiais. O medo distorce nossas vidas e nos torna infelizes. Nós nos agarramos a objetos e pessoas, como uma pessoa que está se afogando agarrada a um tronco flutuante. Ao praticar o desapego e compartilhar essa sabedoria com os outros, damos o presente do não-medo. Tudo é impermanente. Este momento passa. Essa pessoa vai embora. A felicidade ainda é possível.

 

Quando amamos alguém, devemos examinar profundamente a natureza desse amor. O amor verdadeiro não contém sofrimento ou apego. Traz bem-estar para nós mesmos e para os outros. O amor verdadeiro é gerado de dentro. Com amor verdadeiro, você se sente completo em si mesmo; você não precisa de algo de fora. O verdadeiro amor é como o sol, brilhando com sua própria luz e oferecendo essa luz a todos.

 

Em um sutra, o Buda chama nosso desejo por seu verdadeiro nome: desejo. Embora queiramos amor e cura, ainda seguimos nossos desejos sensuais. Por quê? O desejo cria nós nas partes mais profundas de nossa mente. Os nós internos nos empurram. Às vezes, não queremos nos mover, falar ou agir assim. Mas algo dentro de nós nos impele a falar e agir dessa forma. Depois, nos sentimos muito envergonhados. Esse nó interno está nos dando ordens. Isso nos leva a fazer e dizer coisas contra nossa vontade. E quando o fazemos, é tarde demais e sentimos profundamente. Dizemos a nós mesmos: "Como eu poderia ter dito ou feito isso?" Mas já está feito. A raiz desse desejo é nossa energia de hábito. Quando olhamos profundamente para ela, podemos começar a desatar o nó.

 

A energia do hábito está em todos nós na forma de sementes transmitidas por nossos ancestrais, nossos avós e nossos pais, bem como sementes criadas pelas dificuldades que nós mesmos experimentamos. Frequentemente, não temos consciência dessas energias operando em nós. Podemos querer um relacionamento sério, mas nossas energias de hábito podem influenciar nossas percepções, direcionar nossos comportamentos e dificultar nossas vidas.

 

Com plena consciência, podemos nos tornar conscientes da energia do hábito que foi transmitida a nós. Podemos ver que nossos pais ou avós também eram muito fracos de maneiras semelhantes. Podemos estar cientes, sem julgamento, de que nossos hábitos negativos vêm dessas raízes ancestrais. Podemos sorrir de nossas deficiências, de nossa energia de hábito.

 

Talvez no passado, quando nos notamos fazendo algo não intencional, algo que podemos ter herdado, tenhamos culpado nosso eu individual e isolado. Com consciência, podemos começar a ver que nossas ações têm raízes mais profundas e podemos transformar essas energias de hábito.

 

Com a prática da atenção plena, reconhecemos a natureza de hábito do nosso desejo. Atenção plena e concentração podem nos ajudar a olhar e encontrar as raízes de nossas ações. Nossas ações podem ter sido inspiradas por algo que aconteceu ontem, ou podem ter sido inspiradas por algo que aconteceu há trezentos anos que tem suas raízes em um de nossos ancestrais.

 

Quando somos capazes de sorrir ante uma provocação ou direcionar nossa energia sexual para algo positivo, podemos ficar conscientes de nossa capacidade, apreciá-la e continuar assim. A chave é estar ciente de nossas ações. Nossa atenção plena nos ajudará a entender de onde vêm nossas ações.

 

Se ainda não formos capazes de transformar essa energia do hábito, sairemos da prisão de um relacionamento apenas para cair na prisão de outro. É prática comum, quando encontramos dificuldades e sofrimento com nosso parceiro ou cônjuge, pensar que precisamos nos separar ou nos divorciar. Ao ficar longe da outra pessoa, achamos que teremos liberdade. Achamos que essa pessoa é a causa do nosso sofrimento. Mas a verdade é que, embora possamos nos sentir mais livres logo após o divórcio ou separação, muitas vezes nos enredamos imediatamente com outra pessoa. Podemos ficar com essa nova pessoa, mas acabamos agindo exatamente como agimos com a última. Somos vítimas de nossos próprios hábitos. A maneira como pensamos, falamos e agimos não mudou. O que fizemos para causar sofrimento à primeira pessoa, agora fazemos para causar sofrimento a alguém novo e criamos um segundo inferno.

 

Mas se estivermos cientes de nossas ações, podemos decidir se elas são benéficas ou não e, se não, podemos decidir não as repetir. Se estivermos cientes das energias do hábito em nós e pudermos nos tornar mais intencionais em nossos pensamentos, palavras e ações, podemos transformar não apenas a nós mesmos, mas também nossos ancestrais que plantaram as sementes. Se formos capazes de fazer isso, significa que nossos ancestrais também são capazes de sorrir com o que os está provocando. Se uma pessoa ficar calma e sorrir diante de uma provocação, o mundo inteiro terá uma chance melhor de paz.

 

(Do livro “Fidelity” – Thich Nhat Hanh) Traduzido por Leonardo Dobbin

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