Sangha Virtual

 Estudos Budistas

Tradição do Ven. Thich Nhat Hanh

 

Transmissão

 

Algumas sementes são inatas,

Transmitidas pelos nossos antepassados.

Algumas foram plantadas enquanto ainda estávamos no útero,

Outras, quando éramos crianças.

 

Algumas sementes são recebidas por nós durante a nossa vida, na "esfera da nossa experiência”. Algumas sementes, entretanto, já estavam presentes quando nascemos - "a esfera das sementes inatas". Na hora do nosso nascimento, essas sementes inatas já se encontravam dentro da nossa consciência - sementes de sofrimento e felicidade que foram. transmitidas a nós por muitas gerações de nossos ancestrais. Muitas de nossas habilidades, maneirismos e aspectos físicos, bem como nossos valores, nos foram transmitidos por nossos ancestrais. Durante a nossa vida, quando as condições para a sua manifestação forem favoráveis, algumas dessas sementes se manifestarão. Algumas não se manifestarão durante o nosso tempo de vida, mas mesmo assim nós as transmitiremos aos nossos filhos, que por sua vez as transmitirão para os filhos deles. Talvez algumas gerações mais tarde, durante a vida de nossos bisnetos, se as condições forem favoráveis, algumas dessas sementes se manifestarão.

 

A ciência genética mostra que o "esquema” do nosso corpo e de nossa mente vêm de várias gerações de nossos ancestrais. Cientistas que fizeram experiências com ratos descobriram que poderá levar sete gerações para que uma característica diferente reapareça. Assim sendo, quando praticamos a consciência plena, não estamos praticando para nós apenas mas também para os nossos ancestrais e para incontáveis gerações que virão a seguir. Todas essas gerações já estão dentro de nós. As experiências de nossos ancestrais, bem como tempo infinito e espaço infinito, já estão contidos dentro da consciência até de um minúsculo embrião. Quando compreendemos isso, sentimos uma tremenda responsabilidade por cada embrião.

 

Se reservarmos um dia na semana para aprender e praticar paz, alegria e felicidade, durante aquelas vinte e quatro horas traremos paz para nossos ancestrais e para as futuras gerações. Se deixarmos passar uma semana sem praticar, não só nós teremos perdido uma oportunidade para ficar alegre, mas também nossos ancestrais, nossos filhos e os filhos de nossos filhos sentirão a perda. Quando estamos livres do sofrimento e sentimos paz e alegria, nossos ancestrais também sentem paz e alegria, e nossas futuras gerações receberão de nós sementes de paz e de alegria.

 

As sementes que nos foram transmitidas podem ser descritas como "energias formadoras de hábitos" (vashana, "impregnação"). Talvez você pense que não sabe cantar, mas as sementes do canto, passadas por nossa avó que sabia cantar, já estão dentro de nós. Se as circunstâncias forem favoráveis, você não só vai se lembrar de como cantar, mas também gostará de fazê-lo. As sementes de saber cantar que estão dentro de você podem estar enfraquecidas por não terem sido regadas durante muito tempo. Mas quando você começa a praticar o canto, aquelas sementes brotarão e crescerão com força. Sementes como essas são amplamente inatas. Para florir, elas só precisam das condições favoráveis.

 

Acontece a mesma coisa com a iluminação. Quando ouvimos pela primeira vez os ensinamentos sobre o despertar, achamos que são novidade para nós. Mas já temos a semente do despertar dentro de nós. Nosso mestre e nossos amigos de jornada nos fornecem somente a oportunidade para tocar essa semente e ajudá-la a crescer. Quando o Buda entendeu o caminho da grande compreensão e do amor, comentou: "Como é surpreendente todos os seres viventes terem a natureza básica do despertar, embora não o saibam. Por isso são arrastados pelo oceano do grande sofrimento, vida após vida." Existem já muitas sementes salutares dentro da nossa consciência.

 

Com a ajuda de um mestre e de uma Sangha, uma comunidade de praticantes, podemos voltar para nós mesmos e tocá-las. Ter acesso a um mestre e a uma Sangha são as condições favoráveis que permitem que a nossa semente do despertar cresça.

 

 

Em cada célula do nosso corpo, em nossa consciência armazenadora, existem sementes que nos foram transmitidas por cada geração de nossos ancestrais. A "impregnação" da nossa consciência ocorre ainda antes de nascermos, enquanto estamos no útero materno. Tão logo somos concebidos, começamos a receber mais sementes. Toda percepção, toda alegria e todo o sofrimento de nossa mãe e de nosso pai penetram em nós como semente. O maior presente que os pais podem dar aos filhos é sua própria felicidade. Se os pais vivem felizes um com o outro, o filho receberá sementes de felicidade. Mas se os pais ficam com raiva um do outro e fazem sofrer um ao outro, todas aquelas sementes negativas penetrarão na consciência armazenadora do bebê.

 

Trazer uma nova vida ao mundo é um assunto sério. Médicos e terapeutas levam dez anos para obter uma licença para exercer a profissão. Mas qualquer um pode tornar-se pai ou mãe sem qualquer preparação ou treinamento. Precisamos criar um "Instituto da Família” onde os jovens, antes de casar, possam aprender, durante um ano, como olhar profundamente para dentro de si mesmos a fim de ver que tipos de sementes são forres dentro de si e que tipos são fracas. Se uma semente positiva for muito fraca, os pais em perspectiva precisam aprender de que modo regá-las para que fiquem fortes. Se as sementes negativas forem muito fortes, deverão aprender os meios de transformá-las, para que vivam de uma maneira que essas sementes não sejam muito regadas.

 

Um ano de preparação para casar e dar início a uma família não é pedir muito. As futuras mães podem aprender como plantar sementes de felicidade, paz e alegria e evitar plantar sementes malsãs na consciência armazenadora de seus bebês. Os futuros pais também precisam estar conscientes de que a maneira como agem planta sementes na consciência armazenadora de seu filho ainda não nascido. Algumas palavras ásperas, um olhar de repreensão ou um ato indelicado - o bebê que está no útero está recebendo tudo. A consciência armazenadora do feto recebe tudo o que está acontecendo na família. Uma palavra ou uma atitude impensadas podem permanecer com a criança para o resto da vida.

 

Nesse instituto, rapazes e moças podem também entrar em contato com os seus ancestrais para conhecê-los melhor - suas forças e suas fraquezas - e ajudá-los a aprender como lidar com suas próprias sementes. Esse é um projeto importante. Pais jovens deveriam manter um registro das alegrias e dificuldades que tiveram antes e depois da concepção e um outro registro do sofrimento, da felicidade e dos eventos significativos ocorridos durante a vida da criança, desde a idade de 1 até 10 anos. A criança pode esquecer a maior parte do que aconteceu nesse período, mas se os pais puderem contar aos filhos essas coisas, será muito útil para eles mais tarde, quando já tiverem crescido e for época de irem estudar no instituto.

 

Recebemos de nossos pais sementes de sofrimento. Mesmo que estejamos determinados a fazer o oposto do que nossos pais fizeram, se não soubermos como praticar e transformar essas sementes, faremos exatamente o mesmo que eles. Durante a nossa vida, continuamos a receber sementes de nossos pais. Suas alegrias e seus sofrimentos continuam a penetrar em nós.

 

Se nosso pai diz algo que faz nossa mãe feliz, recebemos sementes de felicidade. Se ele diz alguma coisa que faz nossa mãe chorar, recebemos sementes de sofrimento. A melhor maneira de proteger nosso filho é começar direito no momento da concepção. Conheço casais que praticam a plena consciência na vida diária a fim de não plantarem sementes negativas na consciência armazenadora de seus bebês. Sei de mães que cercam a si mesmas de gentileza e consciência plena de modo a poder dar o melhor para seu filho. Viver em consciência plena é muito importante durante os nove meses em que o bebê está se desenvolvendo no útero.

 

E depois que o bebê nasce, os pais devem continuar a praticar a plena consciência. O bebê pode não compreender as palavras quando vocês estão conversando, mas suas vozes transmitem seus sentimentos. Se você disser alguma coisa com amor, o bebê vai sentir isso. Se você disser algo com irritação, a criança percebe também. Não pense que seu bebê, porque está no útero ou ainda é muito pequenino, não compreende. A atmosfera da família, seja ela qual for, penetrará na consciência armazenadora do bebê. Se a atmosfera em casa for pesada, o bebê vai senti-la.

 

Muitas crianças não podem suportar a atmosfera pesada de seus lares e se escondem no banheiro ou em outro aposento para não ouvir as palavras que criam feridas no coração delas. Às vezes, crianças adoecem por causa da maneira como os pais se dirigem um ao outro. Elas podem ter medo de adultos, e daqueles que têm autoridade, até o fim da vida. Já vi bebês que brincam naturalmente e com felicidade quando não tem adultos no quarto, mas tão logo a porta se abre e um adulto entra, eles ficam hesitantes e em silêncio. As sementes do medo dentro delas cresceu enormemente. O sofrimento começa quando ainda somos embriões. E algumas sementes estão presentes na nossa consciência armazenadora até mesmo antes disso, transmitidas por nossos ancestrais.

 

As crianças são muito tenras e vulneráveis. É por isso que nós, como pais, devemos ter cuidado de não fazer ou dizer qualquer coisa que cause sofrimento ao nosso pequeno filho. Sabemos que a marca desse sofrimento o acompanhará durante toda a vida. Muitas crianças são maltratadas física e emocionalmente pelos pais e, em conseqüência disso, sofrem a vida inteira. Viver em plena consciência - sabendo que nossos filhos são a continuação de nós mesmos - é extremamente útil. Vivendo dessa forma e observando em profundidade, vemos claramente que nossos filhos são a nossa continuação. Eles nada mais são do que nós mesmos. Se tivermos sofrido por causa de nossos pais, sabemos que as sementes negativas de nossos pais já estão dentro de nós. Se não formos capazes de reconhecer essas sementes em nós mesmos e praticar para transformá-las, faremos com nossos filhos exatamente o que nossos pais fizeram conosco. Esse ciclo de sofrimento só pode ter fim mediante a prática do viver em plena consciência.

 

Para entender como as sementes na nossa consciência armazenadora são transmitidas através das gerações, o Buda propôs que examinássemos a transmissão do corpo físico. Seu corpo foi transmitido por seu pai, sua mãe e seus ancestrais; você recebeu essa transmissão e o seu corpo é o objeto dessa transmissão. Os três elementos nesse processo de transmissão são: aquele que transmite, o objeto transmitido e o recipiente da transmissão.

 

O Buda nos convida a examinar a natureza de cada elemento e descobrir o vazio de sua transmissão. Fazemos uma pergunta a nós mesmos: O que meu pai transmitiu para mim? A resposta é: transmitiu ele mesmo. O objeto transmitido nada mais é do que ele mesmo e eu sou realmente a continuação de meu pai. Eu sou o meu pai. Nossos ancestrais estão em nós. Algumas vezes se manifestam pela maneira como rimos, falamos ou pensamos. Então, perguntamos: Quem é o recipiente dessa transmissão? É uma entidade separada? Não. O recipiente da transmissão é o objeto tanto da transmissão como do transmissor. O objeto de transmissão forma uma coisa só com o transmissor.

 

Ao penetrar nessa verdade, a realidade do vazio da transmissão, você compreende que você é o seu pai. Você não pode mais dizer: "Estou com muita raiva. Não quero ter nada mais a ver com meu pai." De fato, você é a continuação do seu pai. A única coisa que pode fazer é reconciliar-se com ele. Ele não está ali fora, separado de você - está em você. A paz só é possível com esse conhecimento e com essa reconciliação.

 

(Do livro “Transformações na Consciência” – Thich Nhat Hanh)

 

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